"As ruas fervem em todo o Brasil. Jovens, e outros nem tanto, ocupam as cidades que o capital teima em tentar monopolizar para seu gozo exclusivo, exigindo transportes mais baratos e, cada vez mais, direito à livre manifestação. Com muito vinagre e fogo no lixão urbano, os manifestantes rebelados afrontam as bombas de gás, balas de borracha, e outras nem tanto, da repressão policial. Nos (tele)jornais, querem dirigir o que não puderam evitar, apresentando um vilão fantasmático: “a corrupção!”, para tentar desviar o foco da materialidade das contradições sociais que emergem com as centenas de milhares de pessoas nas ruas. Para eles, há os pacíficos e os vândalos. Bandeiras nacionais e hinos patrióticos representam a “verdadeira cidadania”, os partidos de esquerda seriam os “aproveitadores”. A linha é tênue, e varia conforme os humores dos manifestantes e as “sondagens de opinião”. Há quem, nas próprias manifestações, reproduza valores desse esforço ideológico para direcionar as mobilizações para a zona de conforto da classe dominante. Mas, os jornalistas dos monopólios da comunicação precisam se refugiar nos helicópteros e estúdios, porque sabem que a maioria ali não acredita no que dizem e nas ruas podem também ser brindados com o escracho dos que lutam. Lutam pelo que? O que explica a explosividade e a rapidez surpreendentemente desses acontecimentos? Aonde podem chegar? Qual o seu potencial? E os limites que precisam ultrapassar?" - Com esta breve introdução iniciamos nosso blog em junho de 2013. A luta continua e por isso este espaço continua aberto às analises!

domingo, 23 de junho de 2013

Uma nova nova etapa dos movimentos: as manifestações no Brasil e a necessidade de caminhar pensando.


por Elídio A. B. Marques


Os governantes das maiores cidades e estados do Brasil deram uma cartada: voltaram atrás no aumento das passagens e, ao mesmo tempo, deixaram claro que cumprirão os contratos que prevêem o lucro garantido (e obscuro) das empresas privadas que operam o sistema. Fizeram mais: anunciaram que punirão a população com cortes dos gastos sociais.
O movimento, que já não era apenas pelos 20 centavos, muda de patamar mais uma vez em poucos dias. Vê-se diante da necessidade de aprofundamento de suas bandeiras. Fica claro que não basta a redução imediata, mas a reestruturação do transporte como condição material de acesso à cidade. Por que tal acesso tem que ser mercadoria? Por que teria que ser proporcional à riqueza de cada um? Por que tem que ser privado, garantidor do lucro de poucos?
A redução anunciada pode ser uma oportunidade de ampliar a percepção de que a mobilização vale sim à pena. É uma derrota do “não adianta nada” e isso tem que ser muito valorizado. É um erro menosprezar. Ao mesmo tempo, mostra como a bandeira da redução, sem encarar o problema de distribuição de riqueza que estava por trás dela tinha limitações, que agora podem ser novamente encaradas.
Recapitulando…
O movimento que agora se tornou multitudinário começou com pequenos atos há poucos dias contra o aumento do preço do transporte urbano. No Brasil, ele é muito caro e de má qualidade. A forte priorização da venda de automóveis pelos últimos governos do PT (com crescentes e sucessivas isenções de impostos à indústria automobilística e aos combustíveis fósseis) fez o trânsito das cidades piorarem rapidamente nos últimos anos, agravando a situação dos que usam o transporte público. Aquelas primeiras manifestações foram brutalmente reprimidas pela polícia, um aparato militar herdado da ditadura, que nunca foi minimamente adequado aos padrões de qualquer “Estado de Direito”. A grande mídia, um oligopólio controlado por pouquíssimas famílias, promoveu sua habitual campanha de criminalização e desmoralização do movimento. No entanto, setores significativos da sociedade, até então inertes, somaram-se aos manifestantes iniciais e tornaram os movimentos multitudinários. Um estudo sério mostra que havia mais de 150 mil pessoas na manifestação do Rio de Janeiro no dia 17 de Junho, provavelmente a maior em 20 anos. É claro que as motivações dizem respeito não apenas à questão dos transportes, mas a um conjunto de insatisfações represadas pela “pax” instalada nos últimos dez anos sob a coalizão do PT – partido que foi a principal expressão da esquerda nos anos 80 e 90 – com inúmeros partidos abertamente conservadores. A grande mídia e parte da direita ajustaram imediatamente seus discursos e passaram a tentar “ressignificar” o movimento, impondo-lhe bandeiras mais genéricas e conservadoras como “contra a corrupção”. Mas há um importante setor consciente que procura manter e aprofundar seu significado mudancista e suas bandeiras de distribuição econômica.
As notícias dos dias 18 e início deste dia 19 apontam para o fortalecimento desta direção. Os movimentos não têm uma direção política clara, notadamente no Rio de Janeiro, havendo tensões entre as diversas correntes estudantis ligadas a partidos de esquerda, especialmente os de oposição, e segmentos céticos em relação a organizações. Minoritariamente, há o desafio dos “infiltrados” pela polícia e a extrema-direita. Deve-se observar que o movimento é mais voltado para os governantes locais, ainda com pouca consciência classista e pouco desgaste para a burguesia, o que poderá mudar nos próximos dias.
Algumas prefeituras começam a ceder e a reduzir o valor das passagens. No entanto, isso tem sido feito basicamente pela redução de impostos e realocação de recursos sociais, ou seja, uma “distribuição” sem alterar o lucro das empresas e sem arranhar nenhuma estrutura econômica.
A plenária mais significativa ocorrida no Rio no dia 18 de Junho conseguiu se afastar das tentativas de levar o movimento para a direita e manter a reivindicação econômica pela redução das tarifas, a luta contra a violência policial e agregou um elemento importante: a luta contra o monopólio dos meios de comunicação! Ao contrário de São Paulo, em que esta ideia é mais forte, ainda não há uma clareza sobre a reivindicação da gratuidade do transporte urbano.
A seguir algumas modestas sugestões de um militante que vem de outros momentos sobre como lidar com os desafios atuais do movimento:
1- Defender o direito à cidade e o transporte gratuito
As lutas em curso se iniciaram em torno de um tema crucial: a liberdade real de locomoção na cidade, que vai além do abstrato “ir e vir” que procura esquecer – ou fazer esquecer – sua condicionalidade econômica. Está em causa o direito à cidade, à sua fruição, à dignidade da existência nela. A bandeira da redução das tarifas pode já não ser a única, mas é um foco fundamental. É necessário começar a reivindicar algo que vai além do imediato e questionar o pagamento individual pelo transporte urbano, que produz cada vez mais injustiça e insustentabiliade. As cidades estão inviabilizadas pelo transporte individual. Um transporte público, gratuito e de qualidade é um caminho para garantir uma vida que valha a pena aos que moram nos centros urbanos.
2- Se alguém precisa ganhar, alguém deve perder: a luta é distributiva
Seria uma derrota se a luta em curso terminasse apenas por reforçar o caminho já vigente das isenções fiscais para as grandes empresas. Ao contrário, é preciso ficar claro que se os mais pobres precisam ganhar, pagando menos pelo transporte, os grandes beneficiários pelos seus deslocamentos, os mais ricos, devem pagar. Como? Através da revisão dos impostos sobre a propriedade e sobre os veículos mais caros, mais poluentes e que ocupam mais espaço. É comum hoje que um imóvel na zona sul do Rio de Janeiro pague de imposto 0,02% anuais (1 real pra cada 5 mil de valor de mercado), enquanto um trabalhador ou estudante pode gastar 20% de um salário mínimo para se transportar mensalmente.
As margens de lucro das empresas precisam ser colocadas em causa. As contas abertas e avaliadas publicamente. Seu caráter privado deve ser democrática e claramente discutido e decidido. A Fetranspor, do Rio, e suas congêneres precisam ser tão alvo das manifestações quanto os prefeitos e governadores. Do contrário, caímos no jogo de “culpar os políticos de tudo, para não culpar as elites econômicas de nada”.
3- “Tome partido e abra-se ao diálogo”
O crescimento do movimento produziu o encontro entre a militância que está cotidianamente nas lutas com muitos que recém chegaram. Há estranhamentos, sem dúvida. O proibicionismo de partidos é uma posição antidemocrática e pouco esclarecida e a presença das organizações é legítima e importante.
A rejeição, no entanto, precisa ser compreendida como resultado, em parte, de um processo de decepções acumuladas nas últimas décadas. Aos “partidários” cabe a responsabilidade de estabelecer uma relação respeitosa e dialógica real com os reticentes. A sensação de que os “organizados” dão algumas exageradas “surfadas” em certos momentos dos movimentos não é um delírio plantado pela CIA; tem bases em fatos reais.
É preciso aguçar as sensibilidades: os partidos já não têm o monopólio da circulação de informações alternativas dentro dos movimentos e têm boas razões para saber que estão longe também do monopólio da verdade e da luz. Mas guardam memória, conhecimento, experiências acumuladas das quais não se pode abrir mão. Os que gritam contra eles deveriam saber que são uma invenção “nossa”, dos “de baixo”, uma luta que existe inclusive nos dias em que não há atos marcados. Alguns há já quase um século. Conquistaram a duras apenas até mesmo o direito de estarmos todos juntos na rua hoje. Se uns não sabem disso e outros não sabem tantas outras coisas, que abram-se os canais na melhor medida possível.
Não podemos ser inocentes: nem todos o são. Há segmentos autoritários conscientemente infiltrados. Estes precisam ser identificados e contra eles é preciso que o movimento se previna. Um mal inevitável nos dias que correm em qualquer movimento significativo.
4- A direita joga, qual a novidade?
A “adesão” com intenções distorcionistas de parte da mídia dominante não é nenhuma novidade. Sempre acontecerá com movimentos que rompam a barreira do isolamento que ela própria tenta impôr. Neste momento surge a tentativa de assimilação, de mudança de significado. Cabe aos setores conscientes disputarem este significado: a própria clarificação e consistência das bandeiras cumprirá nisso um papel fundamental. É sempre assim, os movimentos emancipatórios nunca jogam sozinhos.
5- A Polícia Militar: em boa hora para acabar! Pelo fim da perseguição a manifestantes.
O que as polícias militares fizeram com os manifestantes nos últimos dias é o que faz cotidianamente nas periferias e favelas do país; a mudança foi de cenário e endereço. E executa aquilo para o que foi feita: submeter violentamente jovens, trabalhadores e indisciplinados em geral. Trata-se de um resquício da ditadura, completamente inadequado a qualquer expressão mínima de democracia.
É preciso defender a alteração profunda da estrutura das forças de segurança no país, incluindo os debates e caminhos para dar esse passo de transição para a democracia e que já foi indicado até mesmo por organismos internacionais: a desmilitarização da polícia. Do mesmo modo, a utilização de prisões sem fundamento para intimidar os movimentos sociais, bem como táticas de intimidação, espionagem e provocação são inadmissíveis. Medidas fortes, claras e consistentes por parte do governo federal e sua ampla base legislativa seriam tomadas …se tivessem essa vontade política. Se eles não a tem, temos que ensiná-los a ter.

Nenhum comentário:

Postar um comentário