"As ruas fervem em todo o Brasil. Jovens, e outros nem tanto, ocupam as cidades que o capital teima em tentar monopolizar para seu gozo exclusivo, exigindo transportes mais baratos e, cada vez mais, direito à livre manifestação. Com muito vinagre e fogo no lixão urbano, os manifestantes rebelados afrontam as bombas de gás, balas de borracha, e outras nem tanto, da repressão policial. Nos (tele)jornais, querem dirigir o que não puderam evitar, apresentando um vilão fantasmático: “a corrupção!”, para tentar desviar o foco da materialidade das contradições sociais que emergem com as centenas de milhares de pessoas nas ruas. Para eles, há os pacíficos e os vândalos. Bandeiras nacionais e hinos patrióticos representam a “verdadeira cidadania”, os partidos de esquerda seriam os “aproveitadores”. A linha é tênue, e varia conforme os humores dos manifestantes e as “sondagens de opinião”. Há quem, nas próprias manifestações, reproduza valores desse esforço ideológico para direcionar as mobilizações para a zona de conforto da classe dominante. Mas, os jornalistas dos monopólios da comunicação precisam se refugiar nos helicópteros e estúdios, porque sabem que a maioria ali não acredita no que dizem e nas ruas podem também ser brindados com o escracho dos que lutam. Lutam pelo que? O que explica a explosividade e a rapidez surpreendentemente desses acontecimentos? Aonde podem chegar? Qual o seu potencial? E os limites que precisam ultrapassar?" - Com esta breve introdução iniciamos nosso blog em junho de 2013. A luta continua e por isso este espaço continua aberto às analises!

sábado, 22 de junho de 2013

Um Passe Livre para a Vida Civilizada

por Raquel Varela, historiadora e militante de Portugal.



Vivo entre Lisboa e a Holanda e tenho a sorte de viajar quase todos os anos para o Brasil.
Chego ao Brasil sempre recebida com o carinho de grandes amigos, a sabedoria dos meus colegas das universidades brasileiras, com quem fiz grande parte do meu percurso académico e aprendi tanto. Mas quando chego ao Rio e a São Paulo vou sempre dividida entre o desejo dos debates desafiantes na academia, a festa com os amigos à volta de um «escondidinho baiano», e a exaustão pela ausência de mobilidade e ansiedade da violência social e policial.
Vejo por isso agora, de longe, a luta dos jovens pelo passe livre, com muita admiração.
Esta é quase uma carta de turista porque desconheço os dados concretos essenciais, que certamente quem está no Brasil já avaliou: qual é o impacto na esperança média de vida das horas perdidas em transportes ineficientes; qual é a quebra que, representa na produtividade, horas em filas de trânsito; quantos acidentes há pela escolha do automóvel privado como meio de transporte; qual é o impacto ao nível cardíaco, a médio prazo, de não conseguir dormir em silêncio; qual o impacto na saúde pública da poluição nestas cidades; qual o impacto no desenvolvimento infantil da ausência de espaços livres e amplos nas cidades; se contarmos o tempo em transportes qual é a real jornada de trabalho média nestas cidades.
Na Holanda tenho um autocarro de 10 em 10 minutos, até pode vir vazio, mas chega de dez em dez minutos. E o motorista, protegido por leis laborais e salários decentes, conduz-nos com candura; quando vou a um concerto de música clássica o bilhete de eléctrico é gratuito e está incluído no bilhete de música; frequentemente tenho boleia com o ex director do meu instituto, hoje com 66 anos, um dos maiores institutos do mundo na área, na parte de trás da sua…bicicleta. Ele nunca tirou a carta de condução e nunca teve carro. A Holanda é o único país que conheço na Europa (e conheço-os a todos) onde ainda hoje as crianças, grande parte delas, de 7 e 8 anos vão sozinhas para a escola porque há uma lei que limita a 30 km por hora a velocidade dos carros e porque a maioria das pessoas de facto anda de transporte público.
Quando aterro em São Paulo ou no Rio vejo-me a braços com uma maratona exaustiva – 1 a 2 horas para chegar do aeroporto ao centro, filas intermináveis, poluição insuportável. O metro é acessível às zonas ricas e há momentos inusitados onde são destacados trabalhadores para empurrarem as pessoas para as portas; quando arrisquei andar de ônibus, entre esperas de 30 a 40 minutos, fui colocada numa aventura de excesso de velocidade, solavancos, travagens perigosas, rodeada de senhoras idosas em pânico da condução absolutamente imoral; com frequência não consigo ver todos os meus amigos porque, apesar de ter levado 10 horas para atravessar o atlântico, ir a casa de um jantar pode levar 2 horas para ir e 2 horas para voltar, mesmo que seja às 2 da manhã.
É certo que também vivo em Lisboa, cidade onde o passe social foi conquistado durante a revolução há quase 40 anos e onde hoje, em nome do pagamento de juros da dívida dita pública e de outras rendas fixas de capital, o preço dos transportes disparou, colocando uma imensa quantidade de gente presa em casa sem mobilidade.
Esta luta pelo «passe livre» soa-me por isso a algo familiar, algo como, cumprir um ideal.





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