Usando
essa imagem de uma canção de Lupicínio Rodrigues (que, ironicamente, é uma
canção de amor e traição), fazemos algumas anotações sobre as gigantescas
manifestações que tornaram o Brasil revoltoso neste mês de junho de 2013, em
pleno período de hegemonia do lulismo.
São
notas justamente porque é difícil uma reflexão mais densa enquanto estamos
imersos – de modo engajado! - nos eventos e sem condições de “bolear a perna,
puxar o banco e cevar o amargo”, como prescreve o poeta. Sendo assim, vamos às
notas.
Na
trajetória histórica de nossa sociedade, podemos considerar três tradições
políticas como as mais marcantes na cultura brasileira. As duas primeiras são
vinculadas recorrentemente às classes dominantes, a terceira se dá no contexto
de nossas camadas populares:
-
uma direita liberal (atualmente neoliberal), que acredita centralmente no
mercado e no indivíduo (na figura do empreendedor burguês) como cerne de nossa
modernização capitalista; de passado escravista
e rural, esta linhagem política transita sem problemas entre regimes
ditatoriais e democrático-representativos;
-
uma centro-direita ou centro-esquerda, que aposta no Estado como instrumento
principal e na Nação como mediador maior para o desenvolvimento do capitalismo
brasileiro; suas raízes encontram-se nas articulações entre elites políticas e
econômicas de caráter reformador e subordinador das classes populares,
assumindo matizes diversos: anti-liberais, autoritários, democráticos,
populistas\trabalhistas, desenvolvimentistas\neo-desenvolvimentistas;
- a
terceira tradição compõe-se das várias rebeldias populares e intelectuais, que
remontam às lutas de indígenas, negros e
brancos “desclassificados”, sucedidas no séc. XX por anarquistas, comunistas e,
por fim, pela geração petista-cutista agora no poder; tal tradição assenta-se
nas experiências de luta dos trabalhadores brasileiros, colocando-se, portanto,
na oposição às injustiças contemporaneamente perpetradas por nossa formação
social capitalista.
Tendo
em vista o peso colossal da histórica desigualdade social brasileira, por vezes
as duas primeiras tradições - a (neo)liberal e a (neo)desenvolvimentista - se
apresentaram combinadas, de maneira a represar as lutas por direitos dos
setores populares. Por outro lado, volta e meia nossas esquerdas, a terceira
tradição aqui considerada, se colocam sob o jugo do desenvolvimentismo: nos
anos anteriores ao golpe de 1964 o PCB fica a reboque do populismo trabalhista.
Entendemos que a partir de 2002 algo similar se dá com o PT e a CUT, que
assumem desde então uma política neo-desenvolvimentista, em oposição ao duros
anos 1990, sob o neoliberalismo dos governos FHC.
Portanto,
o campo popular e de esquerda no Brasil encontra-se hoje desprovido de boa
parte de sua geração militante original, que se deslocou de uma perspectiva de
transformação radical da crônica desigualdade social brasileira, a partir dos
movimentos sociais, em favor de uma atuação no interior dos aparatos estatais,
por meio de políticas públicas que favoreçam o desenvolvimento nacional
(leia-se: de nosso capitalismo).
Tudo
isto nos ajuda a compreender um pouco os momentos que vivemos hoje.
Nos
últimos 10 anos, período de crescimento econômico e de intensificação de
políticas sociais compensatórias promovidos pelo lulismo, houve algumas
movimentações de protesto e reivindicação da classe trabalhadora: greves de
educadores e servidores públicos, de operários de grandes obras como Belo Monte
e Jirau, lutas contra as remoções em virtude da Copa e das Olimpíadas, lutas de
indígenas, sem-terra e sem-teto por seus direitos, entre outros. Elas levaram
milhares de pessoas às ruas. Embora possam ser pensadas como um preâmbulo para
o que tem acontecido nos dias de hoje, foram muito menores dos que os milhões
que se agitaram nas últimas semanas.
Enquanto
nossa grande greve de professores federais de 2013 foi levada à frente pelo
ANDES, tradicional e combativo sindicato nacional, as mobilizações da juventude
brasileira de agora foram desencadeadas pelo Movimento Passe-Livre de São
Paulo, um movimento social recente, não por nossas históricas entidades
estudantis, como UNE e UBES. Como estas e outras entidades populares e
sindicais, caso também da CUT, estão engolfadas pelas políticas públicas
governistas, viram-se deslegitimadas pelas vozes das ruas – de modo um tanto
óbvio, pois deram as costas a estas mesmas vozes.
Como
a adesão do campo petista-cutista ao neo-desenvolvimentismo implicou no
abandono de uma perspectiva combativa nos movimentos sociais em favor da
cooptação e da burocratização de sua militância, uma geração de ativistas
jovens tem buscado outras metodologias de atuação política. Daí a marca da
horizontalidade e da diversidade dos atuais movimentos, com muitas bandeiras e
poucas lideranças nítidas – para desespero da grande mídia e do mundo da
política oficial, sempre sedentos em identificar ou inventar novos “chefes”.
Daí também a escassa confiança nos partidos políticos (PT e PSDB opõem
neo-desenvolvimentismo e neoliberalismo, mas de costas para a participação
popular), exceção relativa à oposição de esquerda (PSOL, PCB, PSTU), que
continua nas ruas, junto com várias entidades populares, como o MST, e ONGs
autênticas. Daí também a relativa despolitização de grande parte dos
manifestantes que foram às ruas, rebelados, ainda que difusamente, por anos de
neoliberalismo e neo-desenvolvimentismo (que privilegiam, em medidas diversas,
os investimentos capitalistas em detrimento do atendimento às grandes carências
dos trabalhadores brasileiros). Nada que fuja à normalidade, pois esta esquerda
que restou no plano dos movimentos sociais ainda é diminuta.
É
certo que as conquistas de direitos pelas classes populares brasileiras se
deram sempre em contextos de luta, muitas vezes de caráter radical e violento.
Estão aí os exemplos dos sem-terra, indígenas e quilombolas, que veem ativistas
seus tombarem sob as armas do latifúndio e do agronegócio, alojados hoje no
condomínio governista. Da mesma forma, mas em sentido contrário, a luta pelo
transporte público e gratuito, em pouco menos de um mês de manifestações
populares, obrigou os políticos a abaixarem as tarifas. Portanto, a contínua
batalha por transformação social no Brasil, em favor dos trabalhadores, pode
residir agora não apenas nos sindicatos e entidades populares tradicionais, mas
também nestes possíveis novos movimentos sociais.
O
novo neles parece residir num ativismo múltiplo, horizontal, articulado em
redes e outros formatos. A expressão estética da indignação dos manifestantes
se dá também de forma heterogênea e propicia leituras variadas. Os cartazes de
cartolina feitos à mão contendo frases reivindicativas de inúmeras pautas se
assemelham às formas de comunicação contemporâneas presentes nas redes sociais
e, a princípio, representam a própria expressão do individualismo fundante das
relações sociais do nosso tempo. Porém, os movimentos sociais organizados, que
tem um papel pedagógico no atual processo das manifestações de rua, vem se
apropriando desse modelo e promovendo oficinas de cartazes, imprimindo a estes
uma perspectiva coletiva. A socialização política da geração que agora vai às
ruas está ocorrendo na própria dinâmica do movimento e este é um desafio que se
põe a partidos, sindicatos e outros formatos associativos.
O
sentido de intenção estética presente nas manifestações, evidenciado por muitos
símbolos, canções e gestos, pode ser pensado unicamente como despolitização,
mas pode também ser compreendido como uma via de acesso a práticas com as quais
os sujeitos envolvidos nas manifestações procuram se inserir no campo da luta,
rejeitando os símbolos institucionais que estão associados à conversão da
esquerda petista-cutista ao poder e buscando elementos no cotidiano para a
interação nas ruas.
Augusto
Boal, na peça Revolução na América do Sul (1960), ao representar o processo de
indignação dos trabalhadores Zequinha e José com as suas condições de vida,
traz à cena a conclusão de que é necessário fazer uma revolução, onde José
fala:
“Então
vamos fazer! A gente vai todo mundo pra
rua de faca, pau e navalha!”
Ao
longo do texto dramatúrgico podemos acompanhar o processo de socialização
política e de tomada de consciência das personagens, porém essa primeira
expressão de uma vontade de luta, de um desejo de mudança, é interessante para
medirmos o grau de revolta e o caráter de classe aí compreendido. E talvez seja
uma boa metáfora para continuarmos pensando a respeito das atuais movimentações
em curso no Brasil, na perspectiva do aprofundamento das lutas de nossa
cidadania popular, contrárias às múltiplas desigualdades que vivenciamos.
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