"As ruas fervem em todo o Brasil. Jovens, e outros nem tanto, ocupam as cidades que o capital teima em tentar monopolizar para seu gozo exclusivo, exigindo transportes mais baratos e, cada vez mais, direito à livre manifestação. Com muito vinagre e fogo no lixão urbano, os manifestantes rebelados afrontam as bombas de gás, balas de borracha, e outras nem tanto, da repressão policial. Nos (tele)jornais, querem dirigir o que não puderam evitar, apresentando um vilão fantasmático: “a corrupção!”, para tentar desviar o foco da materialidade das contradições sociais que emergem com as centenas de milhares de pessoas nas ruas. Para eles, há os pacíficos e os vândalos. Bandeiras nacionais e hinos patrióticos representam a “verdadeira cidadania”, os partidos de esquerda seriam os “aproveitadores”. A linha é tênue, e varia conforme os humores dos manifestantes e as “sondagens de opinião”. Há quem, nas próprias manifestações, reproduza valores desse esforço ideológico para direcionar as mobilizações para a zona de conforto da classe dominante. Mas, os jornalistas dos monopólios da comunicação precisam se refugiar nos helicópteros e estúdios, porque sabem que a maioria ali não acredita no que dizem e nas ruas podem também ser brindados com o escracho dos que lutam. Lutam pelo que? O que explica a explosividade e a rapidez surpreendentemente desses acontecimentos? Aonde podem chegar? Qual o seu potencial? E os limites que precisam ultrapassar?" - Com esta breve introdução iniciamos nosso blog em junho de 2013. A luta continua e por isso este espaço continua aberto às analises!

terça-feira, 18 de junho de 2013

Enquanto a chaleira chia... (analisando as manifestações)


por Marco Antonio Perruso (Prof. Sociologia DCS-ICHS-UFRRJ) e Viviane Narvaes (Profa. Teatro UNIRio)



Usando essa imagem de uma canção de Lupicínio Rodrigues (que, ironicamente, é uma canção de amor e traição), fazemos algumas anotações sobre as gigantescas manifestações que tornaram o Brasil revoltoso neste mês de junho de 2013, em pleno período de hegemonia do lulismo.[1]

São notas justamente porque é difícil uma reflexão mais densa enquanto estamos imersos – de modo engajado! - nos eventos e sem condições de “bolear a perna, puxar o banco e cevar o amargo”, como prescreve o poeta. Sendo assim, vamos às notas.

Na trajetória histórica de nossa sociedade, podemos considerar três tradições políticas como as mais marcantes na cultura brasileira. As duas primeiras são vinculadas recorrentemente às classes dominantes, a terceira se dá no contexto de nossas camadas populares:
- uma direita liberal (atualmente neoliberal), que acredita centralmente no mercado e no indivíduo (na figura do empreendedor burguês) como cerne de nossa modernização capitalista; de passado escravista[2] e rural, esta linhagem política transita sem problemas entre regimes ditatoriais e democrático-representativos;
- uma centro-direita ou centro-esquerda, que aposta no Estado como instrumento principal e na Nação como mediador maior para o desenvolvimento do capitalismo brasileiro; suas raízes encontram-se nas articulações entre elites políticas e econômicas de caráter reformador e subordinador das classes populares, assumindo matizes diversos: anti-liberais, autoritários, democráticos, populistas\trabalhistas, desenvolvimentistas\neo-desenvolvimentistas;
- a terceira tradição compõe-se das várias rebeldias populares e intelectuais, que remontam às lutas de indígenas,  negros e brancos “desclassificados”, sucedidas no séc. XX por anarquistas, comunistas e, por fim, pela geração petista-cutista agora no poder; tal tradição assenta-se nas experiências de luta dos trabalhadores brasileiros, colocando-se, portanto, na oposição às injustiças contemporaneamente perpetradas por nossa formação social capitalista.

Tendo em vista o peso colossal da histórica desigualdade social brasileira, por vezes as duas primeiras tradições - a (neo)liberal e a (neo)desenvolvimentista - se apresentaram combinadas, de maneira a represar as lutas por direitos dos setores populares. Por outro lado, volta e meia nossas esquerdas, a terceira tradição aqui considerada, se colocam sob o jugo do desenvolvimentismo: nos anos anteriores ao golpe de 1964 o PCB fica a reboque do populismo trabalhista. Entendemos que a partir de 2002 algo similar se dá com o PT e a CUT, que assumem desde então uma política neo-desenvolvimentista, em oposição ao duros anos 1990, sob o neoliberalismo dos governos FHC.

Portanto, o campo popular e de esquerda no Brasil encontra-se hoje desprovido de boa parte de sua geração militante original, que se deslocou de uma perspectiva de transformação radical da crônica desigualdade social brasileira, a partir dos movimentos sociais, em favor de uma atuação no interior dos aparatos estatais, por meio de políticas públicas que favoreçam o desenvolvimento nacional (leia-se: de nosso capitalismo).

Tudo isto nos ajuda a compreender um pouco os momentos que vivemos hoje.

Nos últimos 10 anos, período de crescimento econômico e de intensificação de políticas sociais compensatórias promovidos pelo lulismo, houve algumas movimentações de protesto e reivindicação da classe trabalhadora: greves de educadores e servidores públicos, de operários de grandes obras como Belo Monte e Jirau, lutas contra as remoções em virtude da Copa e das Olimpíadas, lutas de indígenas, sem-terra e sem-teto por seus direitos, entre outros. Elas levaram milhares de pessoas às ruas. Embora possam ser pensadas como um preâmbulo para o que tem acontecido nos dias de hoje, foram muito menores dos que os milhões que se agitaram nas últimas semanas.

Enquanto nossa grande greve de professores federais de 2013 foi levada à frente pelo ANDES, tradicional e combativo sindicato nacional, as mobilizações da juventude brasileira de agora foram desencadeadas pelo Movimento Passe-Livre de São Paulo, um movimento social recente, não por nossas históricas entidades estudantis, como UNE e UBES. Como estas e outras entidades populares e sindicais, caso também da CUT, estão engolfadas pelas políticas públicas governistas, viram-se deslegitimadas pelas vozes das ruas – de modo um tanto óbvio, pois deram as costas a estas mesmas vozes.

Como a adesão do campo petista-cutista ao neo-desenvolvimentismo implicou no abandono de uma perspectiva combativa nos movimentos sociais em favor da cooptação e da burocratização de sua militância, uma geração de ativistas jovens tem buscado outras metodologias de atuação política. Daí a marca da horizontalidade e da diversidade dos atuais movimentos, com muitas bandeiras e poucas lideranças nítidas – para desespero da grande mídia e do mundo da política oficial, sempre sedentos em identificar ou inventar novos “chefes”. Daí também a escassa confiança nos partidos políticos (PT e PSDB opõem neo-desenvolvimentismo e neoliberalismo, mas de costas para a participação popular), exceção relativa à oposição de esquerda (PSOL, PCB, PSTU), que continua nas ruas, junto com várias entidades populares, como o MST, e ONGs autênticas. Daí também a relativa despolitização de grande parte dos manifestantes que foram às ruas, rebelados, ainda que difusamente, por anos de neoliberalismo e neo-desenvolvimentismo (que privilegiam, em medidas diversas, os investimentos capitalistas em detrimento do atendimento às grandes carências dos trabalhadores brasileiros). Nada que fuja à normalidade, pois esta esquerda que restou no plano dos movimentos sociais ainda é diminuta.

É certo que as conquistas de direitos pelas classes populares brasileiras se deram sempre em contextos de luta, muitas vezes de caráter radical e violento. Estão aí os exemplos dos sem-terra, indígenas e quilombolas, que veem ativistas seus tombarem sob as armas do latifúndio e do agronegócio, alojados hoje no condomínio governista. Da mesma forma, mas em sentido contrário, a luta pelo transporte público e gratuito, em pouco menos de um mês de manifestações populares, obrigou os políticos a abaixarem as tarifas. Portanto, a contínua batalha por transformação social no Brasil, em favor dos trabalhadores, pode residir agora não apenas nos sindicatos e entidades populares tradicionais, mas também nestes possíveis novos movimentos sociais.[3]

O novo neles parece residir num ativismo múltiplo, horizontal, articulado em redes e outros formatos. A expressão estética da indignação dos manifestantes se dá também de forma heterogênea e propicia leituras variadas. Os cartazes de cartolina feitos à mão contendo frases reivindicativas de inúmeras pautas se assemelham às formas de comunicação contemporâneas presentes nas redes sociais e, a princípio, representam a própria expressão do individualismo fundante das relações sociais do nosso tempo. Porém, os movimentos sociais organizados, que tem um papel pedagógico no atual processo das manifestações de rua, vem se apropriando desse modelo e promovendo oficinas de cartazes, imprimindo a estes uma perspectiva coletiva. A socialização política da geração que agora vai às ruas está ocorrendo na própria dinâmica do movimento e este é um desafio que se põe a partidos, sindicatos e outros formatos associativos.

O sentido de intenção estética presente nas manifestações, evidenciado por muitos símbolos, canções e gestos, pode ser pensado unicamente como despolitização, mas pode também ser compreendido como uma via de acesso a práticas com as quais os sujeitos envolvidos nas manifestações procuram se inserir no campo da luta, rejeitando os símbolos institucionais que estão associados à conversão da esquerda petista-cutista ao poder e buscando elementos no cotidiano para a interação nas ruas.

Augusto Boal, na peça Revolução na América do Sul (1960), ao representar o processo de indignação dos trabalhadores Zequinha e José com as suas condições de vida, traz à cena a conclusão de que é necessário fazer uma revolução, onde José fala:
“Então vamos fazer!  A gente vai todo mundo pra rua de faca, pau e navalha!”

Ao longo do texto dramatúrgico podemos acompanhar o processo de socialização política e de tomada de consciência das personagens, porém essa primeira expressão de uma vontade de luta, de um desejo de mudança, é interessante para medirmos o grau de revolta e o caráter de classe aí compreendido. E talvez seja uma boa metáfora para continuarmos pensando a respeito das atuais movimentações em curso no Brasil, na perspectiva do aprofundamento das lutas de nossa cidadania popular, contrárias às múltiplas desigualdades que vivenciamos. 




[1]    BRAGA, Ruy. A Política do Precariado – do populismo à hegemonia lulista. São Paulo, Boitempo, 2012; SINGER, André. Os Sentidos do Lulismo. Cia. das Letras, São Paulo, 2012.
[2]    SCHWARZ, Roberto . As Ideias Fora do Lugar in: Ao Vencedor as Batatas. São Paulo, Duas Cidades, 1977.
[3]    A respeito da dialética entre o “velho” e o “novo” nas lutas de nossas classes populares, veja-se: PERRUSO...




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