"As ruas fervem em todo o Brasil. Jovens, e outros nem tanto, ocupam as cidades que o capital teima em tentar monopolizar para seu gozo exclusivo, exigindo transportes mais baratos e, cada vez mais, direito à livre manifestação. Com muito vinagre e fogo no lixão urbano, os manifestantes rebelados afrontam as bombas de gás, balas de borracha, e outras nem tanto, da repressão policial. Nos (tele)jornais, querem dirigir o que não puderam evitar, apresentando um vilão fantasmático: “a corrupção!”, para tentar desviar o foco da materialidade das contradições sociais que emergem com as centenas de milhares de pessoas nas ruas. Para eles, há os pacíficos e os vândalos. Bandeiras nacionais e hinos patrióticos representam a “verdadeira cidadania”, os partidos de esquerda seriam os “aproveitadores”. A linha é tênue, e varia conforme os humores dos manifestantes e as “sondagens de opinião”. Há quem, nas próprias manifestações, reproduza valores desse esforço ideológico para direcionar as mobilizações para a zona de conforto da classe dominante. Mas, os jornalistas dos monopólios da comunicação precisam se refugiar nos helicópteros e estúdios, porque sabem que a maioria ali não acredita no que dizem e nas ruas podem também ser brindados com o escracho dos que lutam. Lutam pelo que? O que explica a explosividade e a rapidez surpreendentemente desses acontecimentos? Aonde podem chegar? Qual o seu potencial? E os limites que precisam ultrapassar?" - Com esta breve introdução iniciamos nosso blog em junho de 2013. A luta continua e por isso este espaço continua aberto às analises!

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Enfraquecida, Dilma fica ainda mais refém do capital - Entrevista Ricardo Antunes - Parte II

Por Gabriel Brito e Valeria Nader, Correio da Cidadania




Nesta segunda parte da entrevista com o sociólogo do trabalho Ricardo Antunes (cuja primeira parte pode ser lida clicando em Descontentamento monumental faz emergir era de rebeliões no Brasil), a análise se centra mais nas movimentações partidárias que se seguiram às manifestações populares espalhadas pelo país. No centro do debate, o PT e o governo, que se encontra instável e com popularidade ameaçadíssima pela queda da aprovação popular.

De toda forma, Antunes assinala que os levantes ainda não proporcionaram novas lideranças populares, o que permite ao partido de Lula recuperar o terreno perdido, até pelo fato de tais revoltas terem deslegitimado todos os partidos do poder, incluídos os da oposição de direita, contestada em seus estados e municípios também.

“É evidente que entramos numa era de incertezas. Mas se numa época dessa não se encontra alternativa de outro tipo, a incerteza pode se prolongar. Por isso que as tendências críticas do governo Dilma são de grande dimensão, o que não pode, por ora, significar que sejam irreversíveis no sentido eleitoral”.

Quanto ao chamado de Lula para uma “refundação do PT”, Antunes se questiona como seria possível, uma vez que o próprio ex-presidente personifica a trajetória e as transformações fisiológicas da legenda. No entanto, diante da falta de uma canalização do movimento de massas rumo a uma nova política, o cenário de revoltas populares sem reflexos renovadores nas urnas também se desenha no Brasil, a exemplo de diversos países europeus.

Correio da Cidadania: Como tem enxergado o atual governo nesta recente conjuntura? Seria exagerado pensar que estamos diante de um vazio de poder, com uma presidente refém de sua base no Congresso, especialmente do PMDB, afastada do PT e também sem o respaldo da base popular do partido?

Ricardo Antunes: O momento é de dificuldade e mesmo de relativa crise. Vale lembrar: duas ou três semanas antes de as rebeliões começarem em São Paulo, Rio, Minas, Bahia, Ceará, Rio Grande do Sul, o PT, na comemoração de seu aniversário, festejava o “novo país”. Quando ocorrem essas manifestações, multiformes, polissêmicas, em alguns casos policlassistas, o governo é pego de modo completamente despreparado. Nos dias mais intensos de crise, não tinha a menor ideia do que fazer. O despreparo era de tal ordem que, depois dos levantes, as respostas foram propostas de plebiscito, para discutir com a população se o voto era distrital ou não etc. Para ver a dimensão do descompasso.

O parlamento brasileiro, ao mesmo tempo, se assustou, mas já se recompõe, seguindo seu curso à margem do que pensa a população. Em plena era das revoltas, na questão de direitos humanos, o Congresso votou e encaminhou o projeto, nefasto, popularmente chamado de “cura gay. Depois recuou. Podemos lembrar ainda que, há cerca de 30 dias, o PMDB fez um banquete, com dinheiro público, regado a camarão e champanhe, para avaliar a participação do partido no primeiro semestre! Quer dizer, não é a tragédia, é a farsa.

É evidente que essas manifestações atingiram duramente o projeto de governo do PT e atingiram duramente o governo Dilma. A cada nova pesquisa, a cada dia, a queda era ainda mais intensa. Claro que tal queda não é obrigatoriamente irreversível. Pode ter reversão, como estamos vendo nas novas pesquisas, porque nesse país a memória é rapidamente apagada, sem falar que há uma carência enorme de alternativas. Mas, ao mesmo tempo em que as quedas podem ser revertidas, podem ser até mesmo irreversíveis. Isto porque as manifestações afetaram também a oposição tradicional. Ninguém pode dizer que o PSDB ou DEM saíram beneficiados. O levante também é contra eles. As manifestações têm um sentido anti-política tradicional, anti-partidos políticos, aflorando um sentimento popular generalizado de que a “política não é o nosso campo” e “não é o campo de ação das classes populares”. Entre aspas, claro. Isso cria o cenário de incertezas.

O governo Dilma está, então, sendo puxado pelo empresariado, que diz ao governo “vem para cá”. Está pressionado pelas bases populares, solapando e mostrando que o projeto Lula-Dilma não tem, substantivamente, nenhum elemento a ser comemorado. Mesmo o Lula, que aparentemente perdeu menos, dentro dos quadros dominantes (excluindo a Marina), precisa tomar cuidados. Lula perdeu menos, mas também ficou de 6 de junho até meados de agosto, completamente mudo e calado e  retornou à cena numa atividade do ABC. Por quê? Porque percebeu que sobravam respingos, ou enxurradas, para todos os lados, inclusive o dele. Ele voltou só depois de muitas semanas. E eis que ressurge. Esperou as pesquisas apontarem uma queda brutal da Dilma e voltou. Ele tem um nível de queda de popularidade inferior ao da Dilma, mas, assim como a criatura herdou o cacife político do criador, o criador poderá herdar o fracasso político da criatura.

Numa campanha eleitoral, como no ano que vem, de Copa do Mundo, se o cenário da Copa das Confederações voltar, a campanha eleitoral vai perguntar: “mas, afinal, quem trouxe para o Brasil a Copa das Confederações, a Copa do Mundo, as Olimpíadas, dizendo que esse país caminhava para o paraíso, quase uma Suíça tropical? Foi o Lula?”. Isso vai ter consequências. Quer pela direita, quer pela esquerda, sendo muito diferente oposição de direita (pois uma parte importante desta apoia o governo e é parte dele) e a oposição de esquerda, que tem muitas dificuldades em buscar um novo caminho.

Ele vai levar chacoalhada de todo lado, numa eventual campanha. Por ora, acho sua candidatura uma hipótese pouco plausível, mas, como estamos ainda a um ano das eleições, só vamos ter um quadro mais preciso a esse respeito quando estivermos mais perto da época da campanha eleitoral.

Correio da Cidadania: E o que acha das movimentações recentes de Lula, dando recados claros quanto à necessidade de ‘profunda reformulação’ no partido e até mesmo convocando grupos e movimentos atrelados ao PT para saírem às ruas e ‘enfrentarem a direita’?

Ricardo Antunes: Sim, é claro. Mas o que podemos imaginar do Lula pedindo uma retomada do PT quando ele é o dono, o chefe e o rei do PT? Quando ele trata o partido como o seu partido? Ele disse várias vezes que só seria candidato, nas eleições anteriores, se ele definisse com quem se aliar, sem aceitar imposições.

É evidente que o Lula tenta dar sinais. Ele é um político da Ordem, mas muito qualificado. Vale lembrar que, lembrando Saramago e Thomas Mann, ele é uma espécie de homem duplicado – literariamente falando. Ele é uma espécie de camaleão político. Ele vai numa manifestação dos catadores de lixo, chama um trabalhador de lado e lembra sua origem operária. Se vai ao encontro dos banqueiros, dirá que eles ganharam dinheiro em seu governo como “nunca antes na história deste país”.

Assim, o Lula também sabe que a crise atingiu duramente o PT. Se a crise do mensalão atingiu de forma devastadora a cúpula do PT, a crise atual atinge duramente o projeto político do PT no poder. O que não significa necessariamente (pois essa palavra não existe em política) que tal projeto será revertido.

Se formos olhar os levantes e revoltas no cenário europeu e do Oriente Médio, vemos diferenças relevantes. No Oriente Médio, na Tunísia, Egito e Iraque, os governos foram varridos do poder, ainda que o Egito mostre que eles são varridos e voltam de outras formas. Essas manifestações de massa tiveram clara, direta e forte incidência política na substituição do poder. Por isso foram verdadeiras revoluções democráticas, digamos assim, marcadas por um sentido forte e radical. Se olharmos, entretanto, a Europa ocidental, com exceção da Grécia, temos as rebeliões da periferia da Inglaterra, que se esparramaram por várias cidades e pelo Reino Unido, o Occupy Wall Street, os Indignados da Espanha, que foram manifestações de massa muito importantes, mas não tiveram incidência direta nos processos eleitorais.

Em Portugal, Espanha, França e Inglaterra temos visto eleitoralmente, quase repetidamente, um movimento pendular. Sai o conservador tradicional, entra a oposição, que se tornou neoconservadora. Sai a oposição neoconservadora, entram os conservadores tradicionais. Uma espécie de bipartidarização, que é quase uma bipartidarização de um sistema, provocativamente falando, de partido único. Porque são dois partidos que se digladiam para aplicar, essencialmente, a mesma política. Excluindo, aqui, o fato de que, de um lado, existe um verniz e, de outro lado, não existe. Mas por baixo do verniz está a madeira bruta, a lenha, que é a mesma.

Correio da Cidadania: Desse modo, não podemos esperar grandes novidades em 2014, eleitoralmente falando?

Ricardo Antunes: Que consequências as manifestações populares terão no processo eleitoral brasileiro é difícil dizer. Olhando os cenários eleitorais dos países ocidentais, poderíamos dizer que têm tido, no geral,  pouca incidência. É difícil que sejam gestadas – esse é o desafio, a nossa dificuldade – novas lideranças populares. A Marina rompeu com o PT e naturalmente ganha nesse quadro todo. Junto do governador de Pernambuco, Eduardo Campos, ela é a única política que sai ganhando. Porque o Campos é, entre aspas, um político aparentemente de “tipo novo”. É a ideia que quer vender. O “discreto” charme do político do Nordeste. E a Marina ganha porque lidera um movimento partidário que recusa o nome partido. Ela sabe que essa denominação está desgastada, motivo pelo qual criou um partido que não tem o nome de partido, além de ter saído em tensão com o governo Lula. Portanto, não é associada diretamente ao seu governo, e sim à oposição, por ter rompido.

Mas olhando o nível de acordos, alianças e a programática da Marina, temos o discurso verde dentro da Ordem. E a Ordem está sendo duramente questionada nessas manifestações. Está sendo ainda mais agudamente questionada nas periferias, nos movimentos dos assalariados urbanos e da juventude estudantil mais organizada, que faz a crítica pela esquerda.

Mas também surgiu a crítica pela direita, conservadora, presente em vários setores das camadas médias. Há uma tentativa de movimentos proto-nazistas e mesmo fascistas, ainda que sejam pequenos. E, portanto, exercem uma oposição claramente à direita. Lembramos da cena daquele jovem, filho de empresário de transportes, quebrando a porta da prefeitura de São Paulo, dando a ideia de jovem raivoso contra a prefeitura do PT. Esse é o quadro que temos. No plano eleitoral, é difícil uma avaliação que não seja muito preliminar mesmo.

O grande esforço seria como avançar para que os setores populares, presentes nas manifestações, canalizassem e buscassem um outro modo de fazer política. E esse outro modo seria uma política radical. No sentido profundo do termo, de tocar nas raízes, tocando profundamente nas questões vitais, de modo a mostrar como o atual padrão de acumulação capitalista existente no país é profundamente destrutivo para as forças populares. Daí que vêm o abandono completo da vida nas cidades, o incentivo ao transporte privado e a destruição do transporte coletivo, o incentivo à educação privada etc., etc.

Dois governos Lula e também um governo Dilma foram mestres em  diminuir tributos da indústria de automóveis, entupindo as cidades de carros, enquanto as malhas de ônibus, trens e metros são precárias, frágeis e mesmo inexistentes em várias cidades. Lembro de uma matéria publicada nestes dias assinalando que só 0,6% das cidades brasileiras têm metrô: 0,6%! O único transporte coletivo que funciona razoavelmente. E só existe em pouquíssimas cidades.

Correio da Cidadania: O PT, por sua vez, tem sido objeto de uma série de balanços históricos, com distintos vieses, após uma década no poder central do país. Como você enxerga o partido hoje, ao que parece, uma força descendente, mas ainda disputando o cenário político na dianteira?

Ricardo Antunes: O PT nasceu como partido com distensões. Quem lembra do PT em 1980 e ao longo da década de 80 sabe. Um partido de muitas tendências e grupamentos, que defendiam e aceitavam – não todos, mas muitos setores – a liderança de Lula, que era um verdadeiro tertius... Comia o pau nos congressos do partido, no final ele chegava e fazia aquela costura toda, como um tertius político.

Agora, evidentemente, a esquerda foi bastante dizimada no PT. Alguns setores de esquerda do partido aceitam o domínio lulista e não o confrontam, salvo exceções. Claro que há ainda muitos  setores populares filiados ao PT, mas que não tem força na cúpula do PT, que se tornou um partido tradicional. Respondendo à pergunta “é possível reinventar o PT?”: quando o Lula propõe tal renovação, já é sinal de empreitada fadada ao insucesso. Se tem alguém que expressa tipicamente a trajetória do PT é o Lula. Nasceu como liderança autêntica, foi a mais importante liderança sindical do país, pouco a pouco foi exercitando a figura do “homem duplicado”, até chegar ao político tradicional, que convive em qualquer espaço: com o Bush e o Obama, com Fidel e setores da esquerda latino-americana, com Aznar, com Uribe, com qualquer um. Sem ser, propriamente, de nenhum desses setores. É o espetacular político da conciliação.

E o PT é isso. Nasceu como partido de massas, independente e autônomo, com vontade de ser diferente. Pouco a pouco foi subindo degraus do poder e da institucionalidade e converteu-se naquilo que Marx chamou, no século 19, de “partido da ordem”. É uma espécie de PMDB do século 21. Cabe tudo. E na sua concepção de governo todos entram, desde que tragam alguns votos, seja no parlamento, seja no voto popular. Tem contatos com a igreja católica e com os neopentecostais. Com os movimentos LGBT, mas se aproxima e quer apoio também de religiosos homofóbicos. Com setores da classe trabalhadora e do empresariado.

Isso é o núcleo dominante do PT. Faço exceção a muitos militantes de base do partido, que criaram o partido, lutaram por ele e ainda veem chance de mudá-lo. Eu também gostaria de ver essa possibilidade de mudança. Mas como analista, não a vejo. O tempo dirá se tal análise faz sentido ou se ainda é possível – como dizem alguns de seus militantes - o PT se reconverter, reinventar-se num partido radical, de massas, anticapitalista e arraigado na classe trabalhadora, tal como ele ensaiava profundamente quando de sua concepção.

Correio da Cidadania: Como viu a ausência de Dilma da recente reunião do PT, teria algum significado mais simbólico ou seria um sinal de uma governante acuada? Como você imagina que caminhará o governo Dilma daqui até o fim do mandato?

Ricardo Antunes: A Dilma e o PT vivem um momento difícil. E se o projeto de governo do PT no plano federal, assim como o projeto de governo do PSDB no plano estadual ou o projeto de governo do PT na prefeitura de SP, ou o projeto de governo estadual e municipal do PMDB no Rio de Janeiro, todos, estão sendo colocados em xeque, a relação entre Dilma e PT tende a ficar difícil. Porque o PT e alguns de seus núcleos têm uma carta-coringa na mão, que é puxar o Lula, acreditando que tal carta seja forte ainda. Pode ser uma carta-coringa meio surrada, uma carta-coringa tão manuseada e usada que o coringa sumiu e ninguém identifica mais que carta é essa. Pode ser, mas podemos fazer pequenas conjecturas, não mais que isso.

O governo Dilma também vive um momento difícil. Ela em tese teria a possibilidade de ser em alguma medida um escoadouro da voz das ruas, mas isso implicaria em romper com o grande capital, financeiro, industrial, do agronegócio, do setor de serviços e também das grandes mineradoras, ou seja, toda a base que sustentou o projeto Lula-Dilma. Portanto, não vejo a menor possibilidade dessa alternativa. Dilma seguirá sendo uma feitora do grande capital, tentando equilibrar-se com apoio popular. Não será nada fácil, até porque ela não é o Lula.

Restaria, então, ao seu governo, tentar recosturar uma aliança policlassista, de grande fôlego, entre o capital e o trabalho, como o governo Lula fez no segundo mandato, remunerando o grande capital como “nunca na história do país”. E Lula tem razão quando fala, com eloquência, que nunca os ricos ganharam dinheiro como em seu governo. Essa é a tragédia que com o Lula vira vitória. Mas ele tem razão. Porque as classes burguesas ganharam muito e a ponta mais pauperizada da classe trabalhadora brasileira – a periferia da periferia, digamos assim, que depende do Bolsa-família – também vê o Lula como alguém diferente dos anteriores. Essa mesma periferia da periferia, que recebe Bolsa-família – hoje em torno de 70 milhões de pessoas, ou seja, muita gente –, vai se encontrar, em 2014, numa campanha eleitoral em que, de um lado, tem a Dilma e, de outro, o Aécio. Sabendo que a insensibilidade social  tucana é ilimitada, vai tapar o nariz e votar na Dilma. Do mesmo jeito que fez em 2006, tapando o nariz e votando no Lula no meio da crise do mensalão, por saber que o governo Alckmin seria uma tragédia social ainda pior.

Assim, o governo Dilma não tem respostas para as lutas populares – ensaiou, mas não as encontrou, porque não pode ter tais respostas. Porque, ao seguir os clamores das manifestações populares, se ela for defender transporte, saúde e educação públicos, vai ter que ferir os interesses das grandes empresas de transporte, das grandes empresas dos pedágios (transnacionais), dos grandes setores privatistas da saúde e da educação privatizadas do Brasil, da indústria automobilística etc. Teria de enfrentar ainda os interesses do capital financeiro, sem fazer concessão nenhuma. Sendo que, naquela segunda-feira, na qual ela lançou 5 pontos primordiais, em forma de pacto com a população, vimos, em primeiro lugar, o “superávit primário preservado”. Ou seja, vamos garantir o dinheiro pra remunerar os bancos e todos aqueles que ganham com o endividamento público.

Portanto, é evidente que entramos numa era de incertezas. Mas, se numa época dessa, não se encontra alternativa de outro tipo, a incerteza pode se prolongar. Por isso que as tendências críticas do governo Dilma são de grande dimensão, o que não pode, por ora, significar que sejam irreversíveis no sentido eleitoral. As eleições vão colocar um cenário já posto hoje. Mesmo que a Marina pudesse batê-la, ou o Campos pudesse ser uma surpresa, é evidente que são partes do mesmo. São mais do mesmo.

O desafio de uma política distinta é encontrar alternativas distintas contra o mesmo, contra a mesmice dominante. E nós ainda não temos essa alternativa. Porque esses movimentos, a tomar pelo seu polo mais positivo (como o Passe Livre, Periferia Ativa, MTST e outros movimentos populares),  em todas as suas manifestações sobre questões muito concretas e reais, não desembocaram e sinalizaram ainda uma alternativa política de outro tipo, uma nova modalidade de política radical, extra-institucional, profundamente contrária à atual. E esse é o desafio mais premente da luta social e política no Brasil de nossos dias.


Leia também a primeira parte da entrevista com Ricardo Antunes.
‘Descontentamento monumental faz emergir era de rebeliões no Brasil’

Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.

Publicado originalmente no Correio da Cidadania em 20 de agosto de 2013.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

POLEMICA ENTREVISTA DE EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO


São Paulo / São Paulo


Eduardo Viveiros de Castro dispara: iludido por noção ultrapasada de progresso, Brasil pode desperdiçar oportunidade única de propor novo modelo civilizatório

Entrevista a Júlia Magalhães
Qual é sua percepção sobre a participação política do brasileiro?
Preferiria começar por uma desgeneralização: vejo a sociedade brasileira como profundamente dividida no que concerne à sua visão do país e do futuro. A ideia de que existe um Brasil, no sentido não-trivial das ideias de unidade e de brasilidade, parece-me uma ilusão politicamente conveniente (sobretudo para os dominantes) mas antropologicamente equivocada. Existem no mínimo dois, e, a meu ver, bem mais Brasis. O conceito geopolítico de Estado-nação unificado não é descritivo, mas prescritivo. Há fraturas profundas na sociedade brasileira. Há setores da população com uma vocação conservadora imensa; eles não integram necessariamente uma classe específica, embora as chamadas “classes médias”, ascendentes ou descendentes, estejam bem representadas ali. Grande parte da chamada sociedade brasileira — a maioria, infelizmente, temo — se sentiria muito satisfeita sob um regime autoritário, sobretudo se conduzido mediaticamente pela autoridade paternal de uma personalidade forte. Mas isso é uma daquelas coisas que a minoria libertária que existe no país, ou mesmo uma certa medioria “progressista”, prefere manter envolta em um silêncio embaraçado. Repete-se a todo e a qualquer propósito que o povo brasileiro é democrático, “cordial”, amante da liberdade, da igualdade e da fraternidade – o que me parece uma ilusão muito perigosa. É assim que vejo a “participação política do povo brasileiro”: fraturada, dividida, polarizada, uma polarização que não está necessariamente em harmonia com as divisões politicas oficiais (partidos etc.). O Brasil permanece uma sociedade visceralmente escravocrata, renitentemente racista, e moralmente covarde. Enquanto não acertarmos contas com esse inconsciente, não iremos “para a frente”. Em outros momentos, é claro, soluços insurreicionais esporádicos, e uma certa indiferença pragmática em relação aos poderes constituídos, que se testemunha sobretudo entre os mais pobres, ou os mais alheios ao teatro montado pelo andar de cima, inspiram modestas utopias e moderados otimismos por parte daqueles que a historia colocou na confortável posição de “pensar o Brasil”. Nós, em suma.
O que é preciso para mudar isso?
Falar, resistir, insistir, olhar por cima do imediato – e, evidentemente, educar. Mas não “educar o povo”, como se a elite fosse muito educada e devêssemos (e pudéssemos) trazer o povo para um nível superior; mas sim criar as condições para que o povo se eduque e acabe educando a elite, quem sabe até livrando-se dela. A paisagem educacional do Brasil de hoje é a de uma terra devastada, um deserto. E não vejo nenhuma iniciativa consistente para tentar cultivar esse deserto. Pelo contrário: chego a ter pesadelos conspiratórios de que não interessa ao projeto de poder em curso modificar realmente a paisagem educacional do Brasil: domesticar a força de trabalho, se é que é isso mesmo que se está sinceramente tentando (ou planejando), não é de forma alguma a mesma coisa que educar.
Isto é só um pesadelo, decerto: não é assim, não pode ser assim, espero que não seja assim. Mas fato é que não se vê uma iniciativa de modificar a situação. Vê-se é a inauguração bombástica de dezenas de universidades sem a mínima infra-estrutura física (para não falar de boas bibliotecas, luxo quase impensável no Brasil), enquanto o ensino fundamental e médio permanecem grotescamente inadequados, com seus professores recebendo uma miséria, com as greves de docentes universitários reprimidas como se eles fossem bandidos. A “falta” de instrução — que é uma forma muito particular e perversa de instrução imposta de cima para baixo — é talvez o principal fator responsável pelo conservadorismo reacionário de boa parte da sociedade brasileira. Em suma, é urgente uma reforma radical na educação brasileira.
“A floresta e a escola”, sonhava Oswald de Andrade. Infelizmente, parece que deixaremos de ter uma e ainda não teremos a outra. Pois sem escola, aí é que não sobrará floresta mesmo.
Por onde começaria a reforma na educação?
Começaria por baixo, é lógico, no ensino fundamental – que continua entregue às moscas. O ensino público teria de ter uma política unificada, voltada para uma – com perdão da expressão – “revolução cultural”. Não adianta redistribuir renda (ou melhor, aumentar a quantidade de migalhas que caem da mesa cada vez mais farta dos ricos) apenas para comprar televisão e ficar vendo o BBB e porcarias do mesmo quilate, se não redistribuímos cultura, educação, ciência e sabedoria; se não damos ao povo condições de criar cultura em lugar de apenas consumir aquela produzida “para” ele. Está havendo uma melhora do nível de vida dos mais pobres, e talvez também da velha classe média – melhora que vai durar o tempo que a China continuar comprando do Brasil e não tiver acabado de comprar a África. Apesar dessa melhora no chamado nível de vida, não vejo melhora na qualidade efetiva de vida, da vida cultural ou espiritual, se me permitem a palavra arcaica. Ao contrário. Mas será que é preciso mesmo destruir as forças vivas, naturais e culturais, do povo, ou melhor, dos povos brasileiros para construir uma sociedade economicamente mais justa? Duvido.
Nesse cenário, quais os temas capazes de mobilizar a sociedade brasileira, hoje?
Vejo a “sociedade brasileira” imantada, pelo menos no plano de sua auto-representação normativa por via da midia, por um ufanismo oco, um orgulho besta, como se o mundo (desta vez, enfim) se curvasse ao Brasil. Copa, Olimpíadas… Não vejo mobilização sobre temas urgentíssimos, como esses da educação e da redefinição de nossa relação com a terra, isto é, com aquilo que está por baixo do território. Natureza e Cultura, em suma, que hoje não apenas se acham mediadas, mediatizadas pelo Mercado, mas mediocrizadas por ele. O Estado se aliou ao Mercado, contra a Natureza e contra a Cultura.
Esses temas ainda não mobilizam?
Existe alguma preocupação da opinião pública com a questão ambiental, um pouco maior do que com a educacional – o que não deixa de ser para se lamentar, pois as duas vão juntas. Mas tudo me parece “too little, too late”: muito pouco, e muito tarde. Está demorando tempo demais para se espalhar a consciência ambiental, o sentido de urgência absoluta que a situação do planeta impõe a todos nós. Essa inércia se traduz em pouca pressão sobre os governos, as corporações, as empresas – estão investindo cada vez mais na historia da carochinha do “capitalismo verde”. E pouca pressão sobre a grande imprensa, suspeitamente lacônica, distraída e incompetente quando se trata da questão das mudanças climáticas.
Não se vê a sociedade realmente mobilizada, por exemplo, por Belo Monte, uma monstruosidade provada e comprovada, mas que tem o apoio desinformado (é o que se infere) de porções significativas da população do Sul e Sudeste, para onde irá boa parte da energia que não for vendida a preço de banana paras as multinacionais do alumínio fazerem latinha de sakê, no baixo Amazonas, para o mercado asiático. Faz falta um discurso politico mais agressivo em relação à questão ambiental. É preciso sobretudo falar aos povos, chamar a atenção de que saneamento básico é um problema ambiental, dengue é problema ambiental, lixão é problema ambiental. Não é possível separar desmatamento de dengue e de saneamento básico. É preciso convencer a população mais pobre de que melhorar as condições ambientais é garantir as condições de existência das pessoas. Mas a esquerda tradicional, como se está comprovando, mostra-se completamente despreparada para articular um discurso sobre a questão ambiental. Quando suas cabeças mais pensantes falam, tem-se a sensação de que estão apenas “correndo atrás”, tentando desajeitadamente capturar e reduzir ao já-conhecido um tema novo, um problema muito real que não estava em seu DNA ideológico e filosófico. Isso quando ela, a esquerda, não se alinha com o insustentável projeto ecocida do capitalismo, revelando assim sua comum origem com este último, lá nas brumas e trevas da metafísica antropocêntrica do Cristianismo.
Enquanto acharmos que melhorar a vida das pessoas é dar-lhes mais dinheiro para comprarem uma televisão, em vez de melhorar o saneamento, o abastecimento de água, a saúde e a educação fundamental, não vai dar. Você ouve o governo falando que a solução é consumir mais, mas não vê qualquer ênfase nesses aspectos literalmente fundamentais da vida humana nas condições dominantes no presente século.
Não se diga, por suposto, que os mais favorecidos pensem melhor e vejam mais longe que os mais pobres. Nada mais idiota do que esses Land Rovers que a gente vê a torto e a direito em São Paulo ou no Rio, rodando com plásticos do Greenpeace e slogans “ecológicos” colados nos pára-brisas. Gente refestelada nessas banheiras 4×4 que atravancam as ruas e bebem o venenoso óleo diesel, gente que acha que “contato com a natureza” é fazer rally no Pantanal…
É uma situação difícil: falta instrução básica, falta compromisso da midia, falta agressividade política no tratar da questão do ambiente — isso quando se acha que há uma questão ambiental, o que está longe de ser o caso de nossos atuais Responsáveis. Estes mostram, ao contrário e por exemplo, preocupação em formar jovens que dirijam com segurança, e assim ao mesmo tempo mantêm sua aposta firme no futuro do transporte por carro individual numa cidade como São Paulo, em que não cabe nem mais uma agulha. Um governo que não se cansa de arrotar grandeza sobre a quantidade de veiculos produzidos por ano. É um absurdo utilizar os números da produção de veiculos como indicador de prosperidade econômica. Isso é uma proposta podre, uma visão tacanha, um projeto burro de país.
Você está dizendo que muitos apelos ao consumo vêm do próprio governo. Mas também há um apelo muito grande que vem do mercado. Como você avalia isso?
O Brasil é um país capitalista periférico. O capitalismo industrial-financeiro é considerado por quase todo mundo hoje como uma evidência necessária, o modo incontornável de um sistema social sobreviver no mundo de hoje. Entendo, ao contrário de alguns companheiros de viagem, que o capitalismo sustentável é uma contradição em termos, e que se nossa presente forma de vida econômica é realmente necessária, então logo nossa forma de vida biológica, isto é, a espécie humana, vai-se mostrar desnecessária. A Terra vai favorecer outras alternativas.
A ideia de crescimento negativo, ou de objeção ao crescimento, a ética da suficiência são contraditórias com a lógica do capital. O capitalismo depende do crescimento contínuo. A ideia manutenção de um determinado patamar de equilíbrio na relação de troca energética com a natureza não cabe na matriz econômica do capitalismo.
Esse impasse, queiramos ou não, vai ser “solucionado” pelas condições termodinâmicas do planeta em um período muito mais curto do que imaginávamos. As pessoas fingem não saber o que está acontecendo, preferem não pensar no assunto, mas o fato é que temos que nos preparar para o pior. E o Brasil, ao contrário, está sempre se preparando para o melhor. O otimismo nacional diante de uma situação planetária para lá de inquietante é extremamente perigoso, e a aposta de que vamos nos dar bem dentro do capitalismo é algo ingênua, se é que não é, quem sabe, desesperada.. O Brasil continua sendo um país periférico, uma plantation relativamente high tech que abastece de produtos primários o capitalismo central. Vivemos de exportar nossa terra e nossa água em forma de soja, açúcar, carne, para os países industrializados – e são eles que dão as cartas, controlam o mercado. Estamos bem nesse momento, mas de forma alguma em posição de controlar a economia mundial. Se mudar um pouco para um lado ou para o outro, o Brasil pode simplesmente perder esse lugar à janela onde está sentado hoje. Sem falar, é claro, no fato de que estamos vivendo uma crise econômica mundial que se tornou explosiva em 2008 e está longe de acabar; ninguém sabe onde ela vai parar. O Brasil, nesse momento da crise, está em uma espécie de contrafluxo do tsunami, mas quando a onda quebrar vai molhar muita gente. Essas coisas têm de ser ditas.
E como você avalia a relação dessa realidade macropolítica, macroeconômica, com as realidades do Brasil rural, dos ribeirinhos, dos indígenas?
O projeto de Brasil que tem a presente coalizão governamental sob o comando do PT é um no qual ribeirinhos, índios, camponeses, quilombolas são vistos como gente atrasada, retardados socioculturais que devem ser conduzidos para um outro estágio. Isso é uma concepção tragicamente equivocada. O PT é visceralmente paulista, seu projeto é uma “paulistanização” do Brasil. Transformar o interior do país numa fantasia country: muita festa do peão boiadeiro, muito carro de tração nas quatro, muita música sertaneja, bota, chapéu, rodeio, boi, eucalipto, gaúcho. E do outro lado cidades gigantescas e impossíveis como São Paulo. O PT vê a Amazônia brasileira como um lugar a se civilizar, a se domesticar, a se rentabilizar, a se capitalizar. Esse é o velho bandeirantismo que tomou conta de vez do projeto nacional, em uma continuidade lamentável entre a geopolítica da ditadura e a do governo atual. Mudaram as condições políticas formais, mas a imagem do que é uma civilização brasileira, do que é uma vida que valha a pena ser vivida, do que é uma sociedade que esteja em sintonia consigo mesma, é muito, muito parecida. Estamos vendo hoje, numa ironia bem dialética, o governo comandado por uma pessoa perseguida e torturada pela ditadura realizando um projeto de sociedade encampado e implementado por essa mesma ditadura: destruição da Amazônia, mecanização, transgenização e agrotoxificação da “lavoura”, migração induzida para as cidades. Por trás de tudo, uma certa ideia de Brasil que o vê, no início do século XXI, como se ele devesse ser o que os Estados Unidos foram no século XX. A imagem que o Brasil tem de si mesmo é, sob vários aspectos, aquela projetada pelos Estados Unidos nos filmes de Hollywood dos anos 50 – muito carro, muita autoestrada, muita geladeira, muita televisão, todo mundo feliz. Quem pagava por tudo isso éramos, entre outros, nós. (Quem nos pagará, agora? A África, mais uma vez? O Haiti? A Bolivia?). Isso sem falarmos na massa de infelicidade bruta gerada por esse modo de vida para seus beneficiários mesmo.
É isso que vejo, uma tristeza: cinco séculos de abominação continuam aí. Sarney é um capitão hereditário, como os que vieram de Portugal para saquear e devastar a terra dos índios. O nosso governo dito de esquerda governa com a permissão da oligarquia e dos jagunços destas para governar, ou seja, pode fazer várias coisas desde que a parte do leão continue com ela. Toda vez que o governo ensaia alguma medida que ameace isso, o congresso, eleito sabe-se como, breca, a imprensa derruba, o PMDB sabota.
Há uma série de impasses para os quais não vejo saída, não vejo como sair por dentro do jogo político tradicional, com as presentes regras – vejo mais como sendo possível pelo lado do movimento social. Este está desmobilizado; se não está, o que mais se ouve é que ele está. Mas se não for por via do movimento social, vamos continuar vivendo nesse paraíso subjuntivo, aquele em que um dia tudo vai ficar ótimo. O Brasil é um país dominado politicamente por grandes proprietários e grandes empreiteiros, que não só nunca fez sua reforma agrária, como onde se diz que já não é mais preciso fazê-la.
Você acha que as coisas vão começar a mudar quando chegarem a um limite?
A crise econômica mundial vai provavelmente pegar o Brasil no contrapé em algum momento próximo. Mas o que vai acontecer com certeza é que o mundo todo vai passar por uma transição ecológica, climática e demográfica muito intensa nos próximos 50 anos, com epidemias, fomes, secas, desastres, guerras, invasões. Estamos vendo as condições climáticas mudarem muito mais aceleradamente do que imaginávamos, e é grande a possibilidade de catástrofes, de quebras de safras, de crises de alimentos. Por ora, hoje, isso está até beneficiando o Brasil. Mas um dia a conta vai chegar. Os climatologistas, os geofísicos, os biólogos e os ecólogos estão profundamente pessimistas quanto ao ritmo, as causas e as consequências da transformação das condições ambientais em que se desenvolve hoje a vida da espécie. Porque haveria eu de estar otimista?
Penso que é preciso insistir que é possível ser feliz sem se deixar hipnotizar por esse frenesi de consumo que a mídia nos impõe. Não sou contra o crescimento econômico no Brasil, não sou idiota a ponto de achar que tudo se resolveria distribuindo a grana do Eike Batista entre os camponeses do semi-árido nordestino ou cortando os subsídios aos clãs político-mafiosos que governam o país. Não que isso não fosse uma boa ideia. Mas sou contra, isso sim, o crescimento da “economia” mundial, e sou a favor de uma redistribuição das taxas de crescimento. Sou também obviamente a favor de que todos possam comprar uma geladeira, e, por que não, uma televisão — mas sou a favor de que isso envolva a máxima implementação das tecnologias solar e eólica. E teria imenso prazer em parar de andar de carro se pudéssemos trocar esse meio absurdo de transporte por soluções mais inteligentes.
E como você vê o jovem nesse contexto?
É muito difícil falar de uma geração à qual não se pertence. Na década de 60 tínhamos ideias confusas mas ideais claros, achávamos que podíamos mudar o mundo, e sabíamos que tipo de mundo queríamos. Acho que, no geral, os horizontes utópicos se retraíram enormemente.
Algum movimento recente no Brasil ou no mundo chamou sua atenção?
No Brasil, a aceleração da difusão do que podemos chamar de cultura agro-sulista, tanto à direita como à esquerda, pelo interior do país. Vejo isso como a consumação do projeto de branqueamento da nacionalidade, esse modo muito peculiar da elite dominante acertar suas contas com o próprio passado (passado?) escravista.
Outra mudança importante foi a consolidação de uma cultura popular ligada ao movimento evangélico. O evangelismo das igrejas universais do reino de Deus e congêneres está evidentemente associado à religião do consumo, aliás.
E como você vê o surgimento das redes sociais, nesse contexto?
Isso é uma das poucas coisas com que estou bastante otimista: o relativo e progressivo enfraquecimento do controle total das mídias por cinco ou seis grandes grupos. Esse enfraquecimento está acontecendo com a proliferação das redes sociais, que são a grande novidade na sociedade brasileira e que estão contribuindo para fazer circular um tipo de informação que não tinha trânsito na imprensa oficial, e permitindo formas de mobilização antes impossíveis. Há movimentos inteiramente produzidos dentro das redes sociais, como a marcha contra a homofobia, o churrasco da “gente diferenciada” em Higienópolis, os vários movimentos contra Belo Monte, a mobilização pelas florestas. As redes são nossa saída de emergência para a aliança mortal entre governo e mídia. São um fator de desestabilização, no melhor sentido da palavra, do arranjo de poder dominante. Se alguma grande mudança no cenário político brasileiro vier a acontecer, creio que vai passar por essa mobilização das redes.
Por isso se intensificam as tentativas de controlar essas redes por parte dos poderes constituídos – isso no mundo inteiro. Pelo controle ao acesso ou por instrumentos vergonhosos, como o “projeto” brasileiro de banda larga, que começa pelo reconhecimento de que o serviço será de baixa qualidade. Uma decisão tecnológica e política antidemocrática e antipopular, equivalente ao que se faz com a educação: impedir que a população tenha acesso pleno à circulação cultural. Parece mesmo, às vezes, que há uma conspiração para impedir que os brasileiros tenham uma educação boa e acesso de qualidade à internet. Essas coisas vão juntas e têm o mesmo efeito, que é o aumento da inteligência social, algo que, pelo jeito, é preciso controlar com muito cuidado.
Você imagina um novo modelo político?
Um amigo que trabalhava no ministério do Meio Ambiente na época de Marina Silva me criticava dizendo que essa minha conversa de ficar longe do Estado era romântica e absurda, que tínhamos que tomar o poder, sim. Eu respondia que, se tínhamos de tomar o poder, era preciso saber manter o poder depois, e era aí que a coisa pegava. Não tenho um desenho político para o Brasil, não tenho a pretensão de saber o que é melhor para o povo brasileiro em geral e como um todo. Só posso externar minhas preocupações e indignações, e palpitar, de verdade, apenas ali onde me sinto seguro.
Penso, de qualquer forma, que se deve insistir na ideia de que o Brasil tem – ou, a essa altura, teria – as condições ecológicas, geográficas, culturais de desenvolver um novo estilo de civilização, um que não seja uma cópia empobrecida do modelo americano e norte-europeu. Poderíamos começar a experimentar, timidamente que fosse, algum tipo de alternativa aos paradigmas tecno-econômicos desenvolvidos na Europa moderna. Mas imagino que, se algum país vai acabar fazendo isso no mundo, será a China. Verdade que os chineses têm 5000 anos de historia cultural praticamente continua, e o que nós temos a oferecer são apenas 500 anos de dominação europeia e uma triste historia de etnocídio, deliberado ou não. Mesmo assim, é indesculpável a falta de inventividade da sociedade brasileira, pelo menos das suas elite políticas e intelectuais, que perderam várias ocasiões de se inspirarem nas soluções socioculturais que os povos brasileiros historicamente ofereceram, e de assim articular as condições de uma civilização brasileira minimamente diferente dos comerciais de TV. Temos de mudar completamente, para começar, a relação secularmente predatória da sociedade nacional com a natureza, com a base físico-biológica da própria nacionalidade. E está na hora de iniciarmos uma relação nova com o consumo, menos ansiosa e mais realista diante da situação de crise atual. A felicidade tem muitos caminhos.

O BRASIL FOI PARA A RUA: E AGORA?


por Osvaldo Coggiola


O movimento que explodiu nacionalmente em junho passado tinha tido um anúncio em abril, em Porto Alegre, quando milhares de estudantes tomaram as ruas, enfrentando a repressão policial, contra o aumento das passagens de ônibus; o movimento da juventude alastrou-se e, a partir do final de maio, para as ruas de diversas cidades e capitais brasileiras, que foram tomadas pelo protesto, com destaque para Rio de Janeiro e São Paulo, onde as mobilizações entraram em choque com a polícia militar e transformaram o centro destas cidades em uma verdadeira praça de guerra. A reivindicação imediata do movimento foi a revogação do aumento das tarifas de ônibus em todas as cidades. O movimento se espalhou rapidamente pelo país, o principal organizador dos protestos foi o Movimento Passe Livre (MPL), que luta pela adoção da tarifa zero (transporte público e gratuito para todos) como objetivo final. Já eram inúmeras as cidades com mobilizações: Curitiba, Florianópolis, Campinas, Feira de Santana, Piracicaba, Goiânia, Natal, etc. As cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro foram as que tiveram a maior quantidade de protestos, assim como as que tiveram mais intensidade e a combatividade da juventude para enfrentar a polícia e a tropa de choque que reprimiu os manifestantes com cassetetes, bombas de gás lacrimogênio, balas de borracha e a detenção dos ativistas; o único efeito conseguido foi a radicalização e a intensificação dos protestos.
O protesto de São Paulo começou no dia 6 de junho com cerca de dois mil manifestantes, contra o aumento das passagens de ónibus para R$ 3,20 (US$ 1,60, 50% mais caro do que nos EUA ou na Europa, sem falar no serviço). Além da tarifa exorbitante, as patronais do transporte recebem subsídios dos governos estaduais e municipais. No confronto com a polícia militar na Avenida Paulista, além da repressão, houve a prisão de vários manifestantes, entre eles o presidente do Sindicato dos Metroviários (Conlutas) Altino Prazeres. No dia 7 houve novas mobilizações e no dia 11 houve uma grande manifestação de 15 mil pessoas que sob a chuva enfrentaram a dura repressão policial, que prendeu não só manifestantes, mas também jornalistas e transeuntes que estavam nas proximidades na hora do enfrentamento. Mais de vinte pessoas foram detidas e treze foram acusadas de formação de quadrilha (sem direito a fiança) numa clara tentativa de calar e esmagar o movimento. No dia 13 houve novas mobilizações com confrontos e prisões, mas o MPL prometeu que só haveria o fim do movimento com a redução das tarifas. O MPL reúne estudantes e cada vez mais jovens trabalhadores ou desempregados das periferias das capitais brasileiras, e algumas organizações de esquerda. Durante as primeiras manifestações, Dilma Rousseff ofereceu o apoio da “Força Nacional” (uma invenção repressiva “contrainsurgente” montada pelo governo do PT) a governadores e prefeitos ‘em apuros’.
No início da manifestação de quinta-feira 13 de junho, frente ao Teatro Municipal, tudo estava pacífico, exceto pelas revistas feitas pelos policiais prendendo qualquer um que estivesse com algo que considerassem suspeito, inclusive vinagre. Muitos manifestantes distribuíam flores entre as ativistas e à própria polícia. Mas havia muitos “P2”, policiais disfarçados, entre os manifestantes. A marcha seguiu organizada, sem qualquer violência; quando os manifestantes já caminhavam havia cerca de 30 minutos, a palavra de ordem era: “sem violência”, ou seja, sem provocações. Quando a manifestação chegou à Praça Roosevelt, a Tropa de Choque irrompeu pela parte da frente do ato e outra parte por trás, encurralando os manifestantes. A Polícia Militar (PM) começou a reprimir de forma violenta e generalizada. A tropa de choque deu tiros e atirou contra a multidão: novamente bala de borracha, gás de pimenta e bombas de gás lacrimogêneo. A repressão generalizada durou cinco horas, aterrorizando também os populares que passavam pela região. Nem os jornalistas identificados se salvaram: sete repórteres da Folha de S. Paulo ficaram feridos, incluindo uma jornalista que feriu um olho com o tiro de uma bala de borracha. Os estudantes que saíam de uma faculdade eram revistados um a um. Alguns poucos tentaram improvisar, como defesa, barricadas de sacos de lixo, as quais se ateava fogo. A “violência” dos manifestantes não passou disso. No mesmo dia 13, Rio de Janeiro também parou e teve manifestações contra o aumento da tarifa carioca.
A PM “despreparada” (na verdade, preparada demais para sua função precípua) desceu o sarrafo até em um jornalista que carregava vinagre, declarado material para preparação de explosivos por um comandante da corporação, numa linha de pensamento inaugurada há dez anos, quando comandantes militares do superpreparado exército dos EUA no Iraque exibiram tambores de inseticida como “armas de destruição em massa”, aderindo, talvez de modo involuntário, à campanha ecológica mundial contra o uso de agrotóxicos. Ninguém foi poupado, em São Paulo. Pessoas desmaiando, gritaria, centenas de homens e mulheres presos e feridos gravemente, inclusive idosos e crianças. “Segurança”.  O governo justificava os gastos faraônicos nos megaeventos com o argumento de que o principal saldo da Copa das Confederações, da Copa 2014 e da Olimpíada 2016, além das vitórias brasileiras, claro, seria a institucionalização dos “novos esquemas de segurança”...
Depois da quarta jornada de protestos, em que uma manifestação de 20 mil pessoas em São Paulo foi atacada de modo selvagem pela PM (com um saldo de 150 detidos e 55 feridos), fomos informados que “o comando do PT está insatisfeito com a atuação do prefeito Fernando Haddad em relação aos protestos contra a tarifa. E, temendo a nacionalização do problema, decidiu intervir para evitar que contamine a imagem do partido em todo o país”. Tarde demais. A presidente Dilma Rousseff foi vaiada (três vezes) na abertura da Copa das Confederações. A “contaminação” chegou a Brasília. Mais significativo talvez, Joseph Blatter (presidente da FIFA e mafioso internacional, segundo Diego Maradona, que alguma coisa aprendeu a respeito em Nápoles) pediu respeito e foi vaiado mais ainda. O problema já estava “nacionalizado” (Rio de Janeiro, Goiânia, Natal e Porto Alegre tiveram manifestações, além de São Paulo) e até “internacionalizado” (Blatter que o diga), com piquetes solidários com os manifestantes brasileiros em várias capitais do mundo (França, Alemanha, Portugal e Canadá). Os torcedores do Estádio Mané Garrincha foram só os (circunstancialmente) últimos da lista. Até a juventude do PT declarou seu apoio aos protestos. E a viúva do Mané (Elza Soares) cantou um novo samba: "R$0,20 eu não pago não". O Brasil se pôs em pé de luta, os jornais do mundo inteiro se fizeram eco.
O governador paulista Geraldo Alckmin havia negado qualquer possibilidade de revogação dos aumentos, e o prefeito Fernando Haddad, do PT, se solidarizou com a repressão, assim como também o fez a bancada do seu partido na Alesp. Para a grande imprensa, até 13 de junho tínhamos só “vândalos” nas ruas; a partir de 17 de junho, a grande data da virada, tivemos “manifestantes”. Milhões de pessoas ocuparam as ruas em mais de 600 cidades, sem coordenação prévia. Quando, em meados de junho e diante do recuo das autoridades em relação ao “tarifaço” urbano, o MPL, que fizera a convocação inicial, chamou a sair das ruas, as mobilizações só aumentaram. Os comentaristas de plantão se manifestaram “surpresos” e até “atordoados” com o crescimento, geométrico e nacional, da mobilização. Para o editorial da Folha de S. Paulo (18/6): “Parecia tudo tão maravilhoso no oásis Brasil e, de repente, estamos revivendo as manifestações da Praça Tahrir, no Cairo, assim de repente, sem aviso, sem um crescendo. Fomos todos pegos de surpresa. Do paraíso, deslizamos no mínimo para o limbo. O que está ocorrendo no Brasil?”. Ocorre simplesmente que o oásis da Folha pouco tem a ver com o deserto dos explorados brasileiros. A luta da juventude iniciou uma nova fase política. No mês de junho, o povo e a juventude brasileiros iniciaram uma mobilização histórica. Começada pela rejeição ao aumento das tarifas do transporte urbano, ela se transformou rapidamente numa mobilização de massas contra todo o regime político.
O MP pediu 45 dias de trégua para se chegar a um acordo. Fernando Haddad, exemplo perfeito do tecnocrata petista que cresceu à sombra de cargos administrativos, obtidos a cavalo do esforço de milhares de militantes populares na década de 1980 (e dos resistentes contra a ditadura nas décadas de 60 e 70), declarou, desde a inspiradora Paris, que aceitaria sentar para discutir e negociar, mas sem abrir mão dos R$ 3,20. Doutor (e docente) em Ciência Política pela USP, onde será que aprendeu o sentido das palavras “discussão” e “negociação“? A longa licença para cargos comissionados parece tê-lo feito esquecer noções básicas de vestibular. Sentado ao seu lado estava o governador do Estado, que meteu o bedelho nos assuntos metropolitanos e deu carta branca para a PM estadual atuar, como se seu partido não tivesse perdido as eleições municipais, e que demonstrou que leva bem a sério sua filiação à Opus Dei, ao declarar os manifestantes “vândalos”, para honra retroativa do nobre e pagão povo guerreiro das estepes europeias. Já o governador de Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB), qualificou as manifestações de ”políticas”, e invocou sua condição de ex militante do Partido Comunista para justificar a repressão. No Rio, todos os usuários do metrô foram submetidos a revistas policiais ex comunistas.
Desde as páginas da Folha de S. Paulo (e de outros jornais brasileiros que compram sua coluna), jornal que, como de hábito, tomou seu tempo para mudar o qualificativo de “vândalos” pelo de “manifestantes”, Elio Gáspari também incursionou pelo campo histórico/antropológico, qualificando os enfrentamentos nas ruas paulistanas de “luta entre canibais e antropófagos”, ignorando que os primeiros são só uma variante dos segundos. A luta entre a tribu caribenha que usava esse nome e os colonizadores europeus concluiu na aniquilação total desse povo, em razão declarada de 100x1 pelos evangelizadores espanhóis (100 canibais mortos para cada espanhol idem), os quais, depois de realizado o massacre, cristiana e civilizadamente, não os comeram.
Na segunda quinzena de junho, a revolta das ruas já era por uma agenda muito mais ampla que a inicial: pela dignidade, pela defesa da juventude combativa, pelo direito democrático a manifestar na rua (existe outro lugar?). Mas é também por 0,20. Ou por mais. R$ 0,20 multiplicado por milhões, diariamente, numa cidade de 19,2 milhões de habitantes. Nos últimos 15 anos, o custo da passagem de ônibus triplicou. Quem recebe um salário mínimo em São Paulo e utiliza um ônibus e um metrô para ir e retornar do trabalho tem um gasto que equivale a quase 27% de sua renda, e passa mais três horas por dia em meios superlotados, isto é, um mês por ano. 0,20 foi a gota d’água (pesada).
A grande imprensa, por sua vez, achou um novo arcano para destrinchar: a identidade do Movimento Passe Livre (MPL), no qual era contabilizada a presença de alguns partidos (de esquerda) conhecidos, e de outras siglas menos conhecidas (ou simplesmente desconhecidas). Plinio de Arruda Sampaio foi único político midiático que teve a honra de estar presente na manifestação do dia 13. Um jornalista do Metrô, jornal que, como outros, é subversivamente distribuído de modo gratuito (se há jornais gratuitos, porque não ónibus gratuitos também?), chegou a elencar a presença no MPL da LER, “Liga da Estratificação (sic) Revolucionária”. Na verdade, o Movimento Passe Livre, principal articulador dos protestos, teve sua origem em uma revolta popular espontânea na cidade de Salvador, em 2003, a “Revolta do Buzu”. Estendeu-se depois nacionalmente, protagonizou a “revolta da catraca” em Florianópolis, conheceu fortes debates políticos internos. A força da mobilização juvenil já assustara uma parte dos governos das prefeituras, a ponto de várias cidades abaixarem as tarifas (Campinas), ou obedecerem decisão judicial nesse sentido (Goiânia). O movimento já tem dez anos de história.
No Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em 2005, o MPL “institucionalizou” sua organização em torno de ir e vir na cidade como direito básico que deve ser assegurado pelo poder público, assim como a educação e a saúde, reivindicando a mudança do modelo de transporte, sob a forma de concessões a empresários privados, para um modelo público. O que exigiria, como outras transformações igualmente necessárias (a remodelação da cidade e do espaço), atacar o regime social capitalista. Logo de cara, exige discutir a espantosa dívida de municípios e estados (R$ 177,5 bilhões, só a do estado de São Paulo, ou mais de 150% de sua receita fiscal) e seus beneficiários (os tubarões financeiros), o controle público dos lucros espantosos das empresas adjudicatárias do transporte urbano, sem falar no orçamento das forças de repressão, em primeiro lugar a PM. Mas não é nada disso que discutem as siglas que todo mundo conhece. Os jovens que lutam pelo passe livre iniciaram, assim, uma virada política no país.
O governo (PT e “aliados”) ficou em estado catatônico por duas semanas. Diante do mutismo, uma penca de “movimentos sociais”, também mudos até então, incluindo os pelegos habituais da última década, lhe propôs “a realização com urgência de uma reunião nacional, que envolva os governos estaduais, os prefeitos das principais capitais, e os representantes de todos os movimentos sociais”, além do próprio governo federal, ou seja, uma pizza do tamanho do Brasil, incluindo os representantes da direita mais podre e corrupta do país. Da trajetória do MST, assinante entre outros do documento, esperava-se algo mais que a proposta de uma conciliação apaziguadora com os calheiros, cabrais e outros sarneys. Uma proposta de organização independente do movimento popular, através de uma plenária nacional de lutadores, não uma proposta de organização do regime político para conter o movimento popular.
O aumento das tarifas de transporte foi o estopim de uma situação social degradada (e, em muitos aspectos, piorada) nos últimos anos, mas não qualquer coisa nem qualquer reivindicação podem ser um estopim. Os transportes e suas tarifas eram (e são) o resumo cotidiano da miséria brasileira. O MPL seria o feiticeiro que invocou demônios, incluída uma direita fascista que passou a disputar a hegemonia do movimento nas ruas, que o próprio MPL não conseguiria mais esconjurar? Não. O MPL fez exatamente o que devia e o que anunciou iria fazer, há muito tempo. Para que aquilo não acontecesse (a direita, os P2 e os criminosos, não “vândalos”, irem para as ruas) era preciso não fazer nada. Os manifestantes supostamente despolitizados, os milhões que não são de direita, nem pitboys de academia, nem do PCC, estavam fazendo na rua o melhor curso acelerado de formação política que se possa imaginar.
Dez dias depois do início das manifestações, os jornais avaliavam uma média de 230 mil manifestantes em doze capitais. A 20 de junho, os manifestantes já se contavam na casa do “mais de milhão”, com um milhão só no Rio de Janeiro. As cifras estavam subestimadas.Em um momento econômico de ameaças inflacionárias, o movimento cresceu, aproximadamente, 100.000% em 15 dias, um índice capaz de fazer corar os maiores índices hiperinflacionários da história (se 2.000 = 100; 2.000.000 = 100.000), como se cada um dos 2.000 manifestantes paulistanos iniciais tivesse recrutado mil manifestantes novos em quinze dias. Uma representação gráfica deste fenômeno só poderia ser realizada usando uma escala logarítmica (lembremos que a hiperinflação alemã de 1923, situada na casa dos % trilhões anuais, foi o primeiro fenômeno que obrigou ao uso de escalas dessa natureza na análise econômica). O uso massivo das redes sociais foi à explicação dada ao fenômeno, entre outras.
Certamente, elas são um meio espetacular para acelerar a velocidade e ampliar o escopo de difusão de ideias e propostas, sob a condição de que elas (as ideias e propostas) existam previamente. Ele é também usado pelo conformismo intelectual que caracteriza a intelectualidade orgânica (“crítica” incluída) do poder nas últimas duas décadas que despejou sua previsível cascata de clichés pseudoexplicativos nas redes sociais (as “dificuldades de relação entre os governos populares e os movimentos sociais” e vulgaridades semelhantes). O MPL, criado há dez anos, teve estrutura (horizontal, vertical, vertihorizotransversal, a que seja), propostas e ideias. Que serviram até agora. Até agora. Fazer a apologia tardia do MPL, da “juventude brasileira nas ruas”, ou da demagogia que seja que a imaginação permita, é situar-se à rabeira da situação, ou pretender explorá-la para se manter (desesperadamente) no poder (no governo, melhor dizendo) ou até para aceder a ele exatamente pelos mesmos meios (eleitorais) que ora se afirma serem ultrapassados. Até 13 de junho tínhamos “vândalos” nas ruas, segundo o poder e a grande imprensa; a partir de 17 de junho, tivemos “manifestantes”, segundo eles mesmos. Esse foi o primeiro recuo dos mandantes (velhos e novos), de um valor bem superior a vinte centavos.
Tirar R$ 0,20 da tarifa foi uma vitória, mas foi só a primeira. Os transportes e suas tarifas se padecem todo dia, no bolso, na pele e no corpo. E nos nervos. As redes sociais não têm nada a ver com isso. Não é possível usar um laptop viajando em pé em um ónibus superlotado das cidades brasileiras. O(a) sociólogo(a) que afirmou estarmos diante de um movimento de jovens de classe média pelo uso maciço de computadores e de redes sociais estava muitíssimo errado. Para proteger essa situação e seus lucros privados foi acionado, na primeira semana de junho, um aparelho policial/militar herdado da ditadura militar, preservado pelos “neoliberais” e aperfeiçoado pelo governo do “Brasil de Todos”, a custa de verbas e mais verbas (que faltam na saúde e na educação), contra dois mil, primeiro, cinco mil, depois, manifestantes. Tratados com extrema brutalidade. Os milhões que foram para as ruas não foram convencidos a fazer isso via facebook: foram convencidos pelo uso do transporte público, pelas filas dos hospitais públicos, pelas escolas públicas sem professores e, finalmente, pelas balas de borracha, as bombas de efeito moral e os gases lacrimogêneos lançados contra os manifestantes. O facebook limitou-se a lhes repassar (para alguns) o ponto de encontro.
 “Manifestações como as atuais ficam sujeitas à classificação de ato de terrorismo, na definição desse crime proposta pelo relator Romero Jucá na comissão especial do Congresso que prioriza a legislação da segurança em vista dos eventos esperados no Brasil” – constatou corretamente Jânio de Freitas. A Casa Civil da Presidência se adiantou, anunciando a apuração da participação de servidores federais nas manifestações. Revolução e contrarrevolução (de face múltipla) ficaram à espreita. O tardio deslize antiterrorista é a continuidade da política pela qual os governos (tucanos e petistas) fizeram do país uma plataforma privilegiada de valorização fictícia do capital financeiro e industrial, com juros (remuneração do capital financeiro) e isenções fiscais elevados, com privatizações em sequência sem fim; para isso se atacou em regra o patrimônio e o serviço público (transporte, saúde, educação, e um longo etc.), em nome da “flexibilidade”, da “eficiência” e de outros fetiches que a maioria da esquerda passou a adorar. O resultado foi uma dívida (interna e externa) monstruosa, aumento de tarifas, e até tarifas onde antes não existiam. Encobriu-se tudo com incentivos ao consumo e bolsas focalizadas, com o resultado de um endividamento médio recorde de 44% da renda anual da população, que duplica quando consideradas só as capitais, e a perspectiva de um calote geral.
Para “crescer exportando”, como dizia o discurso oficial (governo e “oposição”)? Ano passado, crescimento zero e queda da renda per capita. A “recuperação” deste ano já foi deflacionada para 2% no PIB, renda per capita negativa, com inflação de mais de 6%, com um saldo comercial de pífios US$ 6,5 bilhões, depois de alterar a estrutura produtiva do país para transformá-lo em uma plataforma exportadora. Para tapar o buraco: mais privatizações (leilões do petróleo, gestão privada dos hospitais públicos) e eventos, minieventos e megaeventos, com sua sequela de desapropriações e leis antiterroristas. Essa é a verdadeira “direita”. O discurso de Dilma de sexta feira 21 de junho confirmou seu rumo, proteger os super-eventos e alguns tostões do petróleo pré-sal para a educação pública (92% da renda do petróleo fica com as multinacionais que se adjudicaram os leilões), para tirar os jovens da rua (mas nada de tocar os interesses das Krotons e dos subsídios a elas, via Prouni e Fies). Um programa feito por um marqueteiro da burguesia.
Ao mesmo tempo em que o Brasil ganhou a Copa das Confederações, fora do Maracanã, uma multidão - equivalente àquela que se encontrava no estádio - protagonizou uma batalha campal contra a polícia – que novamente usou bombas, gás e balas de borracha. Como saldo houve dezenas de feridos e detidos. Que o futebol, verdadeira religião nacional, não tenha desviado uma mobilização antigovernamental é um fato inédito na história. Tão insólito como o fato de que a presidente nem sequer pisou no estádio, por temor a uma vaia pior que a sofrida na inauguração da Copa. Até Neymar se pronunciou (em que pese ao cerco de segurança que o rodeia permanentemente) em favor das manifestações. No mesmo domingo, a Câmara Municipal de Belo Horizonte foi ocupada por jovens que reivindicaram a abertura dos contratos com as empresas privadas de transporte urbano, para por em evidência os superlucros patronais e a corrupção descarada dos “representantes populares”.
Os movimentos das favelas paulistas (MTST, os “sem teto”, e “Periferia Ativa”) passaram a organizar manifestações e bloqueios de avenidas contra as péssimas condições de moradia, saúde e transporte nos bairros pobres. Ao mesmo tempo, se desenvolveu uma formidável ofensiva repressiva não somente nas ruas, mas nas mesmas favelas, mediante um gigantesco operativo de militarização para evitar que os setores mais explorados se incorporem massivamente à luta. Na Favela da Maré, a operação deixou uma dezena de jovens mortos,  que foram qualificados (depois de assassinados sumariamente) como “criminosos”. Logo ficou em evidência que nenhum deles havia tido sequer uma acusação formal em toda a sua vida. O historicamente monstruoso aparato repressivo brasileiro incrementou-se e se sofisticou como nunca, em função dos “grandes eventos” (campeonato mundial de futebol e Olimpíadas) pela ação do “governo dos trabalhadores”.
A rebelião popular originou uma crise institucional. A PEC 37, que foi enviada pelo governo ao Congresso, foi rechaçada por 430 votos contra 9; ela propunha transferir as atribuições de investigação do Ministério Público à Polícia Judiciária. Uma manobra para que o Poder Judiciário (que se desprendeu do PT) freasse a investigação dos casos de corrupção governamental. Os nove votos a favor foram de nove direitistas hipercorruptos, que até o presente haviam sido adversários do governo. Toda a bancada do PT votou contra o governo, que ficou sem “base aliada” parlamentar. Frente à catástrofe política, Dilma sacou da cartola uma proposta de constituinte para tratar de uma reforma política (financiamento público exclusivo das campanhas eleitorais); o Poder Judiciário e a maioria dos parlamentares se declararam hostis. O governo recuou e passou a defender um plebiscito sobre uma proposta de reforma. Em poucas semanas, o índice de aprovação de Dilma Rousseff caiu de quase 70% para 30%. Em uma reunião de Dilma com as centrais sindicais, o representante do Conlutas denunciou a proposta de plebiscito como uma manobra de distração. As propostas das centrais sindicais ao governo foram simplesmente ignoradas. Finalmente, foi convocada uma greve geral para o dia 11 de julho, por parte das sete centrais sindicais.
Era um movimento convocado para quase um mês e meio depois das primeiras manifestações contra o aumento dos transportes. A tentativa da esquerda de participar com colunas próprias (“vermelhas”) nas manifestações tinha sido literalmente repelida na pancadaria. Muitos manifestantes, ao grito de “oportunistas”, não apreciaram o intento de diferenciação da esquerda chegada tarde, como tampouco o propósito de fazer próprio, como se fosse seu, o movimento. A esquerda replicou reclamando o direito a participar com bandeiras próprias nas manifestações. Mas a esquerda, em geral, não manifestara previamente nenhuma proposta própria - não acrescentara nada ao movimento, que não era o produto de sua agitação política. Não disse nada sobre a Constituinte, quando a burguesia a rechaçou argumentando que essas assembleias só se convocam quando se rompe um regime político e se propõe a criação de outro. Alguns membros da “esquerda progressista” (intelectuais sem partido, aliados do PT de todo tipo) chegaram a denunciar todas as manifestações como montagens da CIA contra o governo do PT, no momento em que Lula saiu de seu mutismo para dizer que se devia estar nas ruas para “empurrar o governo para a esquerda”. No quadro da uma mobilização das ruas, a greve geral nacional de 11 de julho aparecia como uma tentativa de recuperar as ruas para as agências populares do governo (CUT e outras).
Ainda assim, em julho, os movimentos de rua continuam ditando cada passo da política do país, apesar do seu retrocesso. O Rio de Janeiro assistiu diariamente a manifestações contra o governador Sergio Cabral (PMDB), eleito em 2010 (com apoio do PT) e que agora conta com um (superestimado) apoio de 12% do eleitorado. Cabral foi cercado pela população em Campo Grande, onde ocorreu um acidente trágico, e teve que fugir: sua própria casa sofreu um cerco diário. O governo de São Paulo, histórica e atualmente nas mãos do PSDB, sofreu a explosão de uma bomba no seu próprio terreno, quando a empresa Siemens autodenunciou sua participação em um esquema de superfaturamento nas obras de construção do metrô (280 milhões de dólares), com a cumplicidade do governo do estado. As manifestações em São Paulo, ainda que muito minoritárias em relação às da luta contra o aumento da tarifa dos transportes, também continuaram diariamente.
A greve geral de 11 de julho, porém, não foi a continuação das massivas mobilizações populares de junho. Muito parcial na maioria das grandes cidades, quase inexistente fora delas, não conseguiu parar, com exceção de Porto Alegre, o sistema de transportes. Os bloqueios de estradas e avenidas, onde ocorreram, foram realizados por um baixo número de pessoas. As manifestações de rua foram muito pequenas em relação às grandes marchas de junho: 10 mil pessoas, no máximo, na Avenida Paulista. Boa parte dos manifestantes recebeu dinheiro das centrais sindicais, algumas (CUT, Força Sindical) dotadas de enormes recursos financeiros. Nos poucos lugares onde houve atividades combativas (Fortaleza, Porto Alegre, São José dos Campos, Belém, Natal) foi notório o trabalho da CSP-Conlutas, apesar desta representar somente 2% do movimento sindical. Um partido de esquerda, ainda assim, concluiu que o “11 de julho foi a continuação das manifestações de junho” (Opinião Socialista, 17 de julho). Os movimentos responsáveis pelas jornadas de junho, o MPL em primeiro lugar, ignoraram a greve. A CUT, por sua vez, pagou seus “manifestantes” para que carregassem bandeiras (industrialmente confeccionadas) de apoio ao governo, que dominaram os atos públicos (em junho, não se viu nenhuma sequer parecida).
A resposta de Dilma Rousseff à “voz das ruas” ficou reduzida a nada. A promessa de consagrar 100% dos royalties do petróleo em alto mar (menos de 8% da renda petroleira, nas mãos do capital privado internacional) foi mutilada e postergada pelo Congresso. A “reforma política”, anunciada como Assembleia Constituinte e depois reduzida a uma modificação de um par de mecanismos eleitorais, foi simplesmente enterrada no Congresso Nacional. Dilma, que não teve tempo de ir à reunião da Direção Nacional do PT, teve tempo pra receber publicamente um representante parlamentar do PSOL, que lhe manifestou seu apoio. Frente ao óbvio vendaval de críticas, o PSOL emitiu um comunicado distanciando-se de seu senador, mas apoiando a (enterrada) reforma política, que não toca a extinção do Senado ou a redução do mandato de senador (oito anos), não promove a eleição popular de juízes e procuradores, nem anula a vergonhosa Lei de Anistia, que declarou impunes para sempre a assassinos, torturadores y corruptos comprovados do regime militar. Para não falar da militarização das policias, que matam impunemente e possuem foro judicial e tribunais próprios.
Nesse momento, Lula saiu de sua mudez (pelas páginas do New York Times...) para caracterizar as mobilizações como produto do progresso da última década: os carros particulares teriam invadido as ruas, entorpecendo o transporte público. Nenhuma palavra sobre os lucros e monopólios do transporte privatizado. Convocou também, porque era necessário, a uma “renovação do PT”. A reunião da direção deste partido, em meados de julho, foi um episódio de uma crise: manifestou sua insatisfação pela ausência de Dilma e oficializou nove listas para as eleições internas de 10 de novembro, com seis candidatos à presidência do partido. A esquerda do PT apostou todas suas fichas nesse processo.
Toda a sujeira cumulada do Estado (regime) brasileiro começou a aparecer. Os pouco mais de 5500 municípios do país usam nada menos que 508 mil “cargos de confiança”, muitos com salários mensais superiores a 10 mil dólares. Professores e médicos municipais padecem, ao mesmo tempo, salários de fome, para não falar da infraestrutura com a qual lidam. A corrupção e a crise econômica se cruzam no BNDES, o banco estatal cuja carteira de créditos ao setor privado aumentou de R$ 25,7 bilhões (12 bilhões de dólares) em 2001, para R$ 168,4 bilhões (84 bilhões de dólares) em 2010, com uma taxa decrescente do investimento privado. A maioria das empresas beneficiadas pelos créditos oficiais registra prejuízos ou se encontra em falência. A mais importante é a EBX, de Eike Baptista, o “capitalista do Lula”, beneficiária de R$ 10,5 bilhões em créditos do dinheiro público. A crise capitalista está iluminando o buraco negro da corrupção brasileira. O “grupo (holding) X” do “empresário nacional” de Lula/Dilma, Eike Batista (ex 8º fortuna del mundo, atualmente fora da lista das primeiras 200), cujas empresas perderam 90% de seu em Bolsa em dois últimos meses, joga luz sobre a crise do capitalismo brasileiro. Vinicius Torres Freire, na Folha de S. Paulo, afirmou haver uma “greve de investimentos” do setor privado desde 2012. Cos as massas votando com os pés nas ruas, a burguesia está votando com o bolso.
E o novo papa Francisco veio ao “maior país católico do mundo”, no qual a proporção de católicos caiu de 92% em 1970 para 65% em 2010%; diminuição que beneficiou as seitas mafiosas evangélicas, que governaram o país na última década ao lado do PT. O papa veio também para conter o movimento juvenil, desviando-o, chamando o governo petista a “escutar a voz das ruas” – abrindo mais espaço para a igreja católica e reduzindo o dos evangélicos. Os “teólogos da libertação” se somaram calorosamente a essa operação político-religiosa. O Vaticano não trabalha gratuitamente: pôs os imensos gastos papais no Brasil na conta do Estado, os evangélicos pressionaram o governo para que os reduzissem. Diante do imobilismo político, o PMDB buscou se transformar no eixo do regime, reafirmando sua aliança com o PT e o apoio a Dilma, ao mesmo tempo em que bombardeia o Congresso com todas as suas iniciativas políticas. Nas atuais condições, é quase uma roleta russa. As centrais sindicais marcaram uma nova greve geral para 30 de agosto. A juventude em luta anda por outros caminhos. Depois de Belo Horizonte, os jovens de Porto Alegre, organizados no “Bloco de Lutas”, ocuparam a Câmara dos Vereadores, da qual só se retiraram mediante um compromisso escrito dos representantes pelo passe livre nos ônibus e trens para estudantes e desempregados, sem isenção de impostos para as empresas concessionárias. O caldo fermenta.
Sob essas condições, o governo federal, depois de um novo corte orçamentário (10 bilhões de reais), que se somaram aos 28 bilhões já cortados no primeiro semestre, para alcançar as metas de superávit primário impostas pelo FMI (garantindo o pagamento em dia da dívida pública), liberou seis bilhões de reais em “emendas parlamentares” (corrupção disfarçada), com o objetivo de manter o apoio da “base aliada”, que poderia devastar a governabilidade petista. O superávit primário de 2013, ainda assim, é o pior desde 2001. À fuga de capitais (que invocam os perigos de um país no qual as ruas são ocupadas cotidianamente) se soma agora o déficit comercial, o primeiro em toda a década petista: cinco bilhões de dólares nos primeiros sete meses do ano (contra um superávit de mais de 25 bilhões de dólares no mesmo período em 2006). O boom exportador brasileiro-“emergente” foi assim reduzido em 30 bilhões de dólares. Somente o capital financeiro continua ganhando, beneficiado pela elevação das taxas de juros: Itaú Unibanco (maior banco privado) lucrou 3,6 bilhões de reais no segundo semestre, recorde histórico. O país afunda ao compasso do parasitismo capitalista-financeiro. O parasitismo estatal está ao seu serviço. Frentes às mobilizações, a presidente Dilma Rousseff anunciou estudar a fusão de alguns dos 39 ministérios (13 em 1990), que empregam 984.330 funcionários, ou seja, demissões de funcionários federais à vista. Mas nada de tocar os 22.417 “cargos de confiança” dos ministros, um verdadeiro exército de parasitas sociais.
A única notícia “positiva” foi a desaceleração do ritmo inflacionário (0,26% em julho) em parte devido à queda... do preço dos transportes (a grande vitória dos manifestantes). Como a população sabe que isto não se deve em nada ao governo, o índice de popularidade de Dilma Rousseff não aumentou: o único consolo dos petistas oficiais e oficiosos foi que o índice dos opositores eleitorais (declarados) se manteve estável. Isto levaria à conclusão de que, com as devidas correções, o PT poderia “navegar” na atual crise. A grande contribuição da Direção Nacional (DN) do PT (olimpicamente ignorada por Dilma, como vimos) foi a produção de um parco documento (depois de dez dias de negociações entre todas as suas correntes) onde afirma que “a condução de uma nova etapa do projeto exige ratificações na linha política do PT e o governo que reflita sobre a atualização do programa e consolidação da estratégia que expressa a radicalização da democracia”. Ou seja, nada. Sobre a perda de capitais, dívida pública (interna e externa), salários, demissões (o desemprego cresceu 0,6% este ano, e as empresas anunciam novos cortes) e, sobretudo, repressão (assassinatos nas favelas e um desaparecido no Rio, Amarildo de Souza), nem uma palavra.
Enquanto a esquerda em geral se limitava a reclamar seu direito à existência, a esquerda do PT busca aproveitar a crise para subir no aparelho, usando a política do avestruz. “A reação pública da DN do PT, da presidenta Dilma e de Lula foram na mesma direção: enfatizar a coincidência entre as reivindicações das ruas e os nossos objetivos estratégicos”, rezou um documento da Articulação de Esquerda. Para a AE, o problema seria que “as forças de direita, incluindo a que se abriga no governo e controla o Congresso Nacional, não querem nenhuma reforma política”; “os acontecimentos confirmaram”, continuou, “que se o PT não mudar de estratégia, será atropelado”, o que não impediu a AE de assinar o documento da DN (“consolidação e ratificação da estratégia” incluída).
A “força de direita governamental que o controla o Congresso” (o PMDB) instituiu uma comissão parlamentar de reforma política, com um projeto que flexibilizaria o financiamento partidário, eliminando praticamente as multas aos doadores privados (pessoas ou empresas), e suprimindo qualquer limite à propaganda eleitoral por qualquer meio, liberando os partidos e candidatos da comprovação dos gastos, além de incrementar os recursos públicos de campanha; ou seja, a farra completa, pra não usar outra palavra. O saboroso é que a comissão é presidida... pelo próprio PT (Cândido Vaccarezza). Assim, os gurus ideológicos e políticos da esquerda apontaram unanimemente o perigo do surgimento de uma direita fascistoide, como o sujeito que grita “pega ladrão!”, a fim de encobrir uma ação dos verdadeiros ladrões. A esquerda brasileira surgida no calor da fase final da luta contra a ditadura militar e da pseudodemocratização da década de 80 esgotou seu ciclo histórico e político. Em meio ao colapso comercial e financeiro do país, e à corrosão de seu regime político, uma nova esquerda classista poderia ver a luz sobre a base do balanço político da esquerda atual, certamente “atropelada”.
As tendências para a crise financeira, que se manifestam na saída de capitais do mais importante de todos os ‘mercados emergentes’ depois da China, passaram a ser o principal combustível de um segundo turno de mobilizações populares, provavelmente a margem das organizações sindicais tradicionais. As provas de fogo não ficaram atrás: são as que vêm pela frente.