"As ruas fervem em todo o Brasil. Jovens, e outros nem tanto, ocupam as cidades que o capital teima em tentar monopolizar para seu gozo exclusivo, exigindo transportes mais baratos e, cada vez mais, direito à livre manifestação. Com muito vinagre e fogo no lixão urbano, os manifestantes rebelados afrontam as bombas de gás, balas de borracha, e outras nem tanto, da repressão policial. Nos (tele)jornais, querem dirigir o que não puderam evitar, apresentando um vilão fantasmático: “a corrupção!”, para tentar desviar o foco da materialidade das contradições sociais que emergem com as centenas de milhares de pessoas nas ruas. Para eles, há os pacíficos e os vândalos. Bandeiras nacionais e hinos patrióticos representam a “verdadeira cidadania”, os partidos de esquerda seriam os “aproveitadores”. A linha é tênue, e varia conforme os humores dos manifestantes e as “sondagens de opinião”. Há quem, nas próprias manifestações, reproduza valores desse esforço ideológico para direcionar as mobilizações para a zona de conforto da classe dominante. Mas, os jornalistas dos monopólios da comunicação precisam se refugiar nos helicópteros e estúdios, porque sabem que a maioria ali não acredita no que dizem e nas ruas podem também ser brindados com o escracho dos que lutam. Lutam pelo que? O que explica a explosividade e a rapidez surpreendentemente desses acontecimentos? Aonde podem chegar? Qual o seu potencial? E os limites que precisam ultrapassar?" - Com esta breve introdução iniciamos nosso blog em junho de 2013. A luta continua e por isso este espaço continua aberto às analises!

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

A Direita, o Rolezinho e o Caviar

Por Roberto Moll


Nos últimos dias, jornais e articulistas identificados, abertamente ou não, com a direita se apressaram em revelar que o fenômeno do rolezinho não tem nada de político e, muito menos, de esquerda. As notícias e as colunas vieram recheadas com falas de participantes do rolezinho, que desmentiam qualquer ação de caráter político e reafirmavam o desejo de consumo e ostentação, identificados com um segmento do funk. Portanto, os jovens do rolezinho estariam afinados com o capitalismo, mas de forma bárbara e, ao contrário do que pensa a esquerda, não tem nenhuma questão racial ou social em seus atos. Nas entrelinhas, o que faltaria a esses jovens seria um processo civilizador, que não pode prescindir do aparato policial e da adequação ao espaço privado, sacralizado. Assim, arolezinhoação da policial e dos shoppings é quase educativa e não discriminatória. Afinal, nenhum 
shopping nunca proibiu a entrada de ninguém, independente do dinheiro que tem no bolso ou da cor. Ainda nesta lógica, o problema é que uma parte da esquerda, oportunista, quer direcionar os rolezinhos para um caminho político e criou toda celeuma que envolve a questão. Esta esquerda, permeada por sociólogos e outros intelectuais, supostamente, desconhece a realidade dos integrantes do rolezinho porque está confinada aos apartamentos nas zonas mais ricas da cidade, consome do bom e do melhor nos shoppings e escreve no facebook diretamente de Iphones e bebendo starbucks.

Não há dúvidas de que o rolezinho não é um movimento organizado de anti-capitalistas e de esquerda. Nem é preciso ouvir o funk ostentação para concluir isso. Contudo, dizer que não é um ato político é outra coisa. Ao menos se considerarmos como atos políticos todo os atos que buscam interferir, pela manutenção ou transformação, na forma como as relações sociais se estabelecem. Por isso, o rolezinho é um grito político, daqueles que são frequentemente excluídos dos espaços de consumo e dos desejos consumistas, que, se realizados, “agregam valor” na sociedade pautada pelo capitalismo do novo milênio. De certo, nenhum shopping nunca deve ter proibido a entrada de negros ou pobres, ainda que alguns, como um carioca muito conhecido, tenha tentado impor um código de vestimenta nas babás, negras e pobres. Isto nunca aconteceu porque, felizmente, embora sejam negócios privados, a lei brasileira impede que estabelecimentos comerciais abertos ao público discriminem a entrada de qualquer tipo de pessoa. Entretanto, a exclusão do espaço não acontece apenas em sua forma física, mas através da violência simbólica nos olhares e em cada passo que os seguranças dão para seguir qualquer um que, segundo os padrões da civilização de consumo, não tem  a condição e o direito de estar naquele lugar. É assim, muito anterior as proibições legais do rolezinho.
rolezao
Rolezão organizado pelo Movimento dos Sem Teto.
Como as próprias falas dos jovens deixam transparecer, o que leva os jovens a “causar” nos shoppings é a vontade de reafirmar sua existência como sujeito ativo em uma sociedade que valoriza o consumo. Em outras palavras, como consumidor de bens e lazer. Esta necessidade só existe na medida em que a exclusão, por discriminação e por falta de outros espaços, é a norma. O que impulsiona os jovens para o rolezinho é a mesma força que movem outros jovens para esquerda: a percepção de que vivem em uma sociedade na qual a maioria é excluída das benesses do capitalismo enquanto a minoria goza de privilégios. Os articulistas anti-esquerda não conseguem ver esta identificação e classificam a possível relação entre os movimentos sociais e o rolézinho como oportunismo. Mas, se os movimentos de esquerda não se envolvessem seriam acusados de  negligência ou algum tipo de elitismo. Os defensores da direita civilizadora não percebem que os movimentos sociais de esquerda fazem política, como deve ser, e não a partir de gabinetes institucionais ou de propaganda, modos de operar tão criticados nas manifestações do ano passado.
Sobra o caviar. Quer dizer, a acusação de que há contradição entre apoiar o rolezinho como manifestação política voltada para inclusão no espaço consumista e opressor – o Shopping – e a própria esquerda, que frequenta, tranquilamente, o mesmo espaço sem deixar de consumir. É a famosa esquerda caviar, que virou tema de livro a fim de mostrar que muitos sujeitos identificados com o fim da desigualdade não abrem mão da boa vida no Leblon, na Europa e até nos Estados Unidos. Os defensores de tal argumento são incapazes de perceber ou fingem não perceber que ser de esquerda não é ser contra o desenvolvimento técnico, a produção e o consumo. Mais do que isso, não sabem ou fingem não saber que desenvolvimento, produção e consumo não são exclusividade do capitalismo. É óbvio ululante, mas não custa lembrar que antes do capitalismo, os homens desenvolveram máquinas, produziram e consumiram, primeiro aquilo que é indispensável a sua vida material e depois aquilo que dá conforto e alivia o peso do próprio esforço de produção.  Ademais, o próprio modo de produção comunista realmente existente impulsionou o desenvolvimento, a produção e o consumo, ainda que controlado e planejado. Se a esquerda entra e contradição ao consumir Iphones porque é resultado do capitalismo, a direita capitalista deveria abandonar a agricultura, que não é invenção do capitalismo ou qualquer outra técnica produção anterior ao capitalismo ou desenvolvidas em países do comunismo realmente existente.
Desenvolver técnicas, produzir e consumir são atividades inexoráveis da vida dos seres humanos. Quer dizer, quem é de esquerda ou de direita precisa de desenvolver técnicas, produzir e consumir, sobretudo para viver bem em uma sociedade capitalista. Ser de esquerda não é deixar de desenvolver, produzir ou consumir. É lutar pela socialização do desenvolvimento, da produção e do consumo. Certamente, impõe limites ao consumismo que “agrega valor ao camarote”, mas não ao “consumo que agrega valor a vida”. Para aqueles que não entendem isso, a esquerda não tem lugar: ou cultua a, suposta, “pobreza cubana” ou é “caviar”. Ademais, a própria produção de um volume sobre a esquerda caviar com argumentos tão rasteiros revela a debilidade do mercado editorial que patrocina publicação deste tipo enquanto estudos sérios, de pesquisadores de esquerda e de direita, ou romances de jovens escritores enfrentam imensa dificuldade de produção. Mas, este é outro tema. Por fim, os mais cínicos dirão que os rolézinhos são desculpas, de pobres e esquerdistas, para roubar e vandalizar os shoppings. Não parece ser tônica. As próprias administradoras dos shoppings negam qualquer dano grave. Se existe qualquer infração, a polícia deve investigar e punir, na medida da lei, os infratores. Bombas, balas de borracha e proibições só demonstram o preconceito – estabelecido na ideia de que qualquer aglomeração de pobres e negros é uma ameaça – e a incapacidade da polícia, que ao invés de punir o infrator pune qualquer um com “aparência suspeita”.
rolezinho
*Roberto Moll é professor, historiador e analista de Relações Internacionais.
Texto originalmente publicado em http://capitalismoemdesencanto.wordpress.com/2014/01/20/a-direita-o-rolezinho-e-o-caviar/

sábado, 18 de janeiro de 2014

Rosa Parks em Itaquera

Por Ruy Braga




No dia 1º de dezembro de 1955, no centro da cidade de Montgomery, estado do Alabama, Rosa Parks, uma costureira de 42 anos, subiu em um ônibus a fim de voltar pra casa após mais um dia de trabalho. Ela acomodou-se em um assento para pessoas “de cor” e após três paradas, as quatro primeiras fileiras reservadas aos brancos já estavam lotadas. O motorista James Blake mandou que ela e os outros três passageiros negros que estavam ao seu lado se levantassem para dar lugar aos brancos que entravam.
Nada de mais, se tivermos em conta que no Alabama, assim como os outros estados do sul dos Estados Unidos, vigiam as leis segregacionistas de Jim Crow que exigiam que escolas e locais públicos, incluindo trens e ônibus, tivessem instalações separadas para brancos e negros. Na prática, os negros, mesmo que pudessem pagar, simplesmente não podiam frequentar os mesmos restaurantes ou lojas, usar os mesmos banheiros ou beber água nos mesmos bebedouros que os brancos.
Contraditoriamente, os Estados Unidos viviam o auge do chamado fordismo, modelo de desenvolvimento que integrou produção e consumo de massa, elevou o padrão material da classe trabalhadora estadunidense e absorveu parte dos conflitos classistas por meio de políticas sociais. Em cidades industriais como Chicago ou Detroit, por exemplo, os trabalhadores negros recém-chegados do sul formavam a espinha dorsal do orgulhoso operariado fordista. Apesar da persistente discriminação no acesso às qualificações industriais mais complexas, eles eram sindicalizados, recebiam altos salários e começavam a enviar seus filhos para as universidades.
Seguindo os avanços econômicos, uma onda politicamente progressista insinuava-se nos Estados Unidos. Em 1954, a segregação escolar promovida pelo Estado havia sido declarada inconstitucional pela Suprema Corte americana. O espírito do tempo favorecia atitudes ousadas e Rosa Parks recusou-se a ceder seu lugar no ônibus. O motorista chamou a polícia que a prendeu, deflagrando, assim, o mais importante movimento social da história recente dos Estados Unidos.[1]
O movimento dos direitos civis dos negros, uma campanha nacional em defesa da igualdade racial que contou com a participação entusiasmada de milhares de ativistas, negros e brancos, notabilizou-se por seus métodos não-violentos. A mecânica era simples: um jovem negro entrava, por exemplo, em uma lanchonete e pedia algo. O proprietário branco recusava-se a atendê-lo. Após uma sessão de gritos, insultos e humilhações, alguém tentava o retirar à força. O jovem, então, sentava-se no chão. Ao chegar, a polícia prendia-o por distúrbio da ordem pública. Em seguida, os demais ativistas iniciavam uma campanha para libertá-lo da prisão. Isto não apenas fortalecia a repercussão da propaganda igualitarista pelas cidades como atraía novos militantes.
A eficiência deste método revela o nível da opressão que vitimava os negros nos Estados Unidos. Desde que não estivesse lá a trabalho, a simples presença de um negro em uma lanchonete para brancos já era considerada uma ofensa suficientemente grave para justificar a violência policial. O curioso é que, a rigor, um jovem negro que entrasse em uma loja em Montgomery e pedisse para ser atendido, não cometia crime algum. Afinal, as leis segregacionistas referiam-se às escolas e ao sistema de transporte. Daí a necessidade de prendê-los por “perturbação da ordem”. Ou seja, o fundamento da prisão era simplesmente o racismo.
Toda vez que leio ou assisto alguma notícia a respeito dos atuais “rolezinhos” em shoppings paulistanos, lembro-me imediatemente da luta dos negros nos Estados Unidos. De fato, há algo da altivez e da bravura de Rosa Parks na atitude irreverente e desafiadora destes jovens das periferias. A “primeira dama dos direitos civis”, como ficou conhecida, parece ter se mudado pra Itaquera. Da mesma maneira, sinto o cheiro fétido das leis de Jim Crow na repressão dos empresários e da PM aos encontros organizados pelo Facebook.
Ao fim e ao cabo, que crime estes jovens cometeram? O que pode justificar que eles sejam barrados nas portas dos centros comerciais, revistados, imobilizados, ameaçados, agredidos e, finalmente, presos pela PM? As razões só podem ser o racismo e o ódio de classe que transformam a vida dos moradores das periferias em um verdadeiro calvário.
Na realidade, estes encontros condensam aspectos conflitantes do modelo de (sub)desenvolvimento pilotado pela burocracia lulista. Por um lado, temos a desconcentração da renda entre os que vivem dos rendimentos do trabalho cujo resultado foi a ampliação do acesso dos trabalhadores pobres e precarizados, especialmente, os mais jovens, ao crédito.
Apesar da deterioração das condições de trabalho e da dura realidade dos baixos salários, a base da pirâmide da renda composta majoritariamente por negros e não-brancos progrediu mais rapidamente que os estratos médios, alterando a norma social de consumo. Atualmente, jovens pobres conseguem comprar um “Mizunão” de mil reais em várias parcelas: “Por enquanto a ostentação está só na imaginação. Só tenho um Mizuno, que custou R$ 1000. Eu paguei em prestação, porque na lata (à vista) não é fácil não” (Anderson da Silva, 18 anos, ‘Rolezinho’ nas palavras de quem vai15/01/2014, G1). O tênis é um signo distintivo de trabalho duro e de progresso material calçado por uma moçada com um pouco mais de dinheiro no bolso e querendo se divertir. Aliás, estes jovens cresceram enquanto os centros comerciais das periferias eram construídos, daí sua intimidade com este ambiente.
Por outro, o atual modelo baseia-se em um tipo de acumulação por desapossamento que privatizou o solo urbano ao transformá-lo em uma inesgotável fonte de superlucros capitalizados pelos bancos e pelas construtoras.[2] Além disso, esta verdadeira financeirização da terra está gentrificando bairros populares ao deslocar estes mesmos grupos recém-promovidos ao consumo para regiões mais distantes.[3]
Do movimento destas placas tectônicas surgiu o recente terremoto que assusta empresários e autoridades governamentais. Os desejos de lazer e de consumo de milhões de jovens recém-chegados ao mercado de trabalho choca-se com a inexistência de espaços públicos nas periferias e com instituições plasmadas por uma soma de racismo e ódio de classe. A acumulação por desapossamento aprofunda a segregação espacial, exacerbando a discriminação racial:
“Aqui na nossa quebrada (em Guaianazes) não tem muita opção de lazer para os jovens. Não tem uma quadra da hora, uma praça pra gente se reunir, não tem nada” (Daniel de Souza, 18 anos).
“O maior defeito do Jardim Nazaré é não ter espaço para o lazer. Falta lugar pra gente se encostar e ninguém discriminar. Se a gente fica na praça à noite, eles vão achar que a gente está usando drogas” (Caique Vinicius, 19 anos).
Assim, importa menos a aparente despolitização dos encontros do que a revelação da face racista do atual modelo de (sub)desenvolvimento:
“A gente foi pra se divertir, ficar com as meninas e conhecer outras pessoas. Mas a polícia chegou com cassetete. (…). Chegou com agressão pra gente tudo ir embora, bala de borracha, gás. Eu achei errado. Se fosse numa conversa como gente grande, agente poderia chegar num acordo, colocar um lugar pra fazer esses ‘rolês’” (Lucas Lima, 17 anos).
Diante deste tipo de experiência, a politização dos rolezinhos não deve tardar. A propósito, o simples fato de ir ao shopping em grupo já é um ato inadvertidamente político. Afinal, esses jovens estão se reapropriando de espaços que lhes foram espoliados pela privatização da cidade. Na realidade, observamos um desdobramento previsível do processo aberto em junho passado e enraizado no atual esgotamento do ciclo de crescimento com certa redistribuição de renda. A desaceleração econômica tem ajudado a precipitar a transformação da inquietação social das periferias em indignação com a maneira deplorável como os jovens negros são tratados no país.
No final do ano, esta juventude decidiu testar os limites do atual modelo, esbarrando acidentalmente na tática da não-violência que os negros estadunidenses empregaram nos anos 1950 e 1960. Sabemos como a resiliência do racismo na América – expressa, por exemplo, no assassinato de Martin Luther King – ajudou a radicalizar parte do movimento dos direitos civis e a criar o partido Black Panther.[4] Hoje, ainda é possível identificar a serenidade de Rosa Parks nos semblantes dos presos em Itaquera. Enfim, eles desejam apenas ser encarados com dignidade, nem que para isso ostentem roupas de marca e acessórios caros. Amanhã, contudo, pode ser que o fantasma de Huey P. Newton seja visto dando um rolezinho pela Faria Lima.

[1] Em sua autobiografia, Rosa Parks diz curiosamente que, mesmo décadas após o boicote aos ônibus de Montgomery, movimento que surgiu por conta de seu ato de insubmissão, ainda muitos americanos acreditavam que ela não se levantara, pois estava muito cansada após um dia extenuante de trabalho. No entanto, a atitude de Rosa Parks foi planejada minuciosamente pela Associação Nacional pelo Progresso das Pessoas de Cor (NAACP), uma organização criada em 1909 pelo sociólogo negro W.E.B. Du Bois, autor de clássicos das ciências sociais estadunidenses, tais como The Study of the Negro Problems (1898), The Philadelphia Negro (1899), The Souls of Black Folk (1903) e Black Reconstruction in America (1935). Para mais detalhes, ver Rosa Parks (com Jim Haskins), My Story (Nova Iorque, Puffin, 1999).
[2] Para mais detalhes sobre o conceito de “acumulação por desapossamento”, ver David Harvey, O novo imperialismo (São Paulo, Loyola, 2004).
[3] Veja o caso de Itaquera, por exemplo, onde a construção do estádio do Corinthians e os investimentos em mobilidade urbana decorrentes da copa do mundo inflacionaram os aluguéis e os valores dos serviços na região. Para mais detalhes, ver Luiz Henrique de Toledo, “Quase lá: a copa do mundo no Itaquerão e os impactos de um megaevento na sociabilidade torcedora”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 19, n. 40, p. 149-184, jul./dez. 2013.
[4] Posso apostar que outro “black” deverá aparecer nos shoppings da cidade caso a repressão aos rolezinhos insista em perdurar.


Publicado em http://blogconvergencia.org/blogconvergencia/?p=1922


quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Não é só pelos bailes funks

“Rolezinhos” surgem em meio a proibições na periferia; ao se verem discriminados, os meninos cheios de gírias e sonhos moldados pela ostentação criaram um debate sobre cidadania
por Samantha Maia — publicado 14/01/2014 15:02, última modificação 15/01/2014 08:46

Em vez de manifestação, é encontro. No lugar da passeata, tem “rolezinho”. A mobilização de jovens da periferia de São Paulo em shoppings foi uma forma encontrada para chamar a atenção sobre a sua realidade. Faltava apenas a sanção do prefeito paulistano Fernando Haddad (PT) para que a proibição a bailes funks em logradouros públicos, independentemente do horário, entrasse em vigor na capital. O projeto - o primeiro de autoria do vereador Conte Lopes (PTB), ex-comandante da Rota - passou pela aprovação da Câmara sem grandes dificuldades em 2013. Parecia não existir oposição.
Eis que no dia 7 de dezembro daquele ano, o shopping Itaquera, na Zona Leste de São Paulo, foi surpreendido pela presença de cerca de 6 mil garotos e garotas do funk. Na página da organização do evento no Facebook, adolescentes na faixa dos 15 a 20 anos comentavam que era para "tirar umas fotos", "dar uns beijos", "rever os amigos". Não se sabe exatamente se a proibição aos bailes foi o verdadeiro estopim do movimento. O principal objetivo manifestado pelos milhares de jovens era se divertir.
O número elevado de pessoas causou tumulto. A presença massiva de garotos da periferia, em sua maioria negros, causou mal estar no centro comercial. Houve medo dos frequentadores diante de um grupo antes escondido nos rincões com suas músicas proibidas. A primeira notícia divulgada, a partir de fontes oficiais - leia-se, a polícia -, era de que se tratava de um arrastão. Na tevê, as cenas eram de correria. No pé das reportagens, a observação da administração do shopping passava batido: não houve arrastão e os furtos eram casos isolados.
A repercussão negativa levou os participantes do “rolezinho” a uma discussão para além do que o encontro pretendia. Dentre os questionamentos levantados pelos funkeiros nas redes sociais estavam o porquê não serem bem-vindos ao shopping. Por que a polícia agia de forma hostil sem que eles fizessem algo errado? Mais: como eles poderiam mostrar que tinham o direito de entrar no shopping?
Além de atentar para o problema mais premente, o da proibição do baile funk, a galera dos “rolezinhos” jogou luz sobre o preconceito de classe e o racismo na cidade de São Paulo.
A invasão do templo do consumo por habitantes de guetos é uma subversão da ordem higienista. Ao ocupar aquele espaço, ultrapassaram uma das barreiras mais sérias da estrutura social urbana nas grandes cidades brasileiras: a da segurança e da exclusividade de ser um consumidor em um shopping center.
Não faltaram xingamentos aos “rolezeiros”: bandidinhos, maloqueiros, vagabundos, gente que não tem mais o que fazer. Deveriam, segundo indignados frequentadores de shoppings, trabalhar e aprender a falar igual gente, dentre outras sugestões nada amigáveis. Muitos jovens já estão, no entanto, no mercado de trabalho, a desempenhar funções mal remuneradas, na base da pirâmide social.
Ao se verem discriminados, os meninos e meninas cheios de gírias e com sonhos moldados pela ostentação do consumo envolveram-se em um debate valioso sobre cidadania, seus direitos e seu papel na sociedade. Mesmo que sem perceber, faziam política. Como um dos inimigos apontados, surge a mídia, taxada pelos “rolezeiros” de “mentirosa” – que, segundo comentários de participantes nas redes sociais, estaria em busca da audiência a qualquer custo ao retratar os eventos de maneira pejorativa.
O tom dos encontros seguintes foi o de provar que não eram o que haviam pintado sobre eles. Um dos organizadores do segundo “rolezinho”, no shopping Internacional de Guarulhos, alertava para a situação desfavorável em seu perfil no Facebook: "Temos que manter a disciplina sem baderna, sem drogas, sem bebidas alcoólicas. Nós vamos pra curtir. Se quiser fazer essas coisas, não estará participando do encontro. Faça fora do shopping porque estão todos voltados a nós: a tevê e os jornais estão olhando pra nós. Se nós fizermos baderna não vamos ter moral para pedir nossos direitos e vamos ser passados como marginais". No “rolezinho” realizado no dia 14 de dezembro houve novamente confusão e 23 pessoas foram levadas até a delegacia sem justificativa.
Outros eventos semelhantes ocorreram sob a repressão policial e críticas da sociedade que não diferem das apontadas a outras manifestações. "A gente não tem mais sossego nem no shopping", disse uma dona de casa entrevistada.
A lógica é clara. Que as pessoas tenham problemas para resolver, finge-se entender, desde que não atrapalhem o trânsito ou o passeio no shopping.
No dia 8 de janeiro, o prefeito Haddad vetou na íntegra o projeto de lei que proíbe a utilização de vias públicas para realização de bailes funk. A decisão não apaziguou, porém, os ânimos e outros “rolezinhos” continuam em alta. Agora os jovens funkeiros querem mais espaços de lazer e respeito do seu direito de ir e vir. Como uma paródia dos 20 centavos da tarifa de ônibus, estopim das manifestações de junho, pode-se dizer hoje que “não é só pelos bailes funks”. O debate levantado pelos “rolezinhos” diz respeito a toda a sociedade.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

2014: instabilidade, incertezas e lutas

ESCRITO POR VALÉRIA NADER E GABRIEL BRITO, DA REDAÇÃO  do CORREIO DA CIDADANIA
SEGUNDA, 06 DE JANEIRO DE 2014



2014 é um ano que começa já marcado por efemérides. 30 anos do comício das Diretas Já, 50 anos do golpe militar de 64, a copa do mundo novamente no Brasil, eleições presidenciais. Ao contrário de 2013, que não trazia inscritos grandes datas e acontecimentos históricos, mas que protagonizou as maiores e mais intensas manifestações populares dos últimos tempos.

As surpresas que são reservadas para 2014, para além dos fatos marcantes que já estão no radar, não há como adivinhar. Nada faz supor, no entanto, que será um ano de calmaria.

As avaliações prospectivas desse Correio no começo de 2013 já prognosticavam a limitação de visão estrutural e um estreito arco de ação redistributiva nos quais vinham se enquadrando as medidas do governo que procuravam impulsionar uma economia em crise. Agora, neste início de ano novo, estão evidentes, para além dessa miopia, um repique e reincidência do governo no conservadorismo econômico a la FMI, respondendo às pressões e chantagens do mercado financeiro e do grande capital e fazendo ouvidos moucos às vozes eloquentes que vieram das ruas em 2013.

Como de praxe, as maiores vítimas serão as populações que há séculos sofrem com a ausência e péssima qualidade de serviços públicos. Ainda que favorecidas pela farra do consumo, com TVs e celulares de último tipo, essas populações certamente voltarão às ruas, à medida que assistirem às finalizações das obras faraônicas voltadas à copa, enquanto sofrem para terem acesso à saúde, educação, segurança pública e transporte de qualidade.

Nosso entrevistado especial para esta edição especial prospectiva é Pablo Ortellado, professor e pesquisador da USP e também militante pela democratização e expansão das políticas culturais. Para Ortellado, “2014 vai ser um teste para a nossa democracia. Porque os compromissos que foram assumidos pela Copa do Mundo são muito pesados, são muito antidemocráticos. Foram compromissos muito grandes, assumidos de uma maneira, digamos, vertical pelo governo federal, envolvendo o respeito aos direitos civis e aos nossos direitos políticos. Assim, nós temos restrições à liberdade de expressão, restrições à liberdade de associação e em relação à capacidade que temos de fazer oposição. Nós abrimos mão da nossa soberania. Nós somos obrigados a aceitar e implementar um conjunto de leis e medidas de proteção de propriedade intelectual que são contrapartidas ao acordo feito com a FIFA. (...) Os custos democráticos são muito altos. Eles envolvem a suspensão de direitos civis básicos, as remoções de população em cidades, projetos urbanísticos de grande impacto social”.

Quanto à cobertura midiática de tantos acontecimentos singulares nesses últimos meses, Ortellado não tem grandes esperanças no avanço da pauta da regulamentação dos meios de comunicação, “a grande ausência das três últimas gestões do Partido dos Trabalhadores”, em 2014. Acredita, no entanto, que o legado do aprendizado com as mobilizações sociais de 2013 reflita em mais movimentações em 2014, de forma a pressionar o governo em prol de políticas públicas a favor da população.

Leia a entrevista completa a seguir.

Correio da Cidadania: Falar de 2013 é falar do ano em que a população brasileira foi massivamente às ruas de todo o país em busca de direitos. Como você enxerga essas manifestações, pensando em todo o processo anterior de mobilização que a elas conduziu, no estalar e dimensão adquirida no mês de junho e no momento posterior à efervescência inicial?

Pablo Ortellado: Eu acho que o grande legado das manifestações foi a conquista da redução das passagens. O que a gente viu em junho de 2013 foi a maturação de um processo de pelo menos dez anos, no qual o aumento de passagens tem gerado reações de grupo de jovens urbanos que saem às ruas para protestar contra as tarifas. Aconteceu mais de uma dezena de vezes, em várias capitais brasileiras, desde 2003.

É um processo que foi se acumulando, maturou e explodiu em 2013, quando as mobilizações em São Paulo e Rio de Janeiro contra o aumento das passagens serviram de modelo para conquistas de reduções em mais de cem cidades brasileiras, com mais de 200.000 habitantes.

É uma vitória sem precedentes da mobilização popular, que reacendeu outras reivindicações. Algumas bem sucedidas, a maioria mal sucedida. Mas terminou fornecendo uma espécie de paradigma de que a mobilização popular e direta pode dar resultados muito concretos.

Correio da Cidadania: O que pensa da forma com que os vários níveis de governo, municipal, estadual e federal, enfrentaram e têm enfrentado tantos e legítimos protestos populares, no que se refere ao atendimento às demandas sociais?

Pablo Ortellado: Como foi uma explosão muito difusa pelo território nacional, com muitas formas de reação, é difícil fazer uma apreciação geral. Para além das reações imediatas de governos, que reduziram as passagens numa parcela muito grande de municípios brasileiros (uma reação positiva, pois reconheceram a força e a legitimidade da demanda), penso numa segunda demanda, que foi mais ou menos transversal em todas as mobilizações de junho: a reforma da polícia.

A regulamentação do uso de armas menos letais, o fim dos autos de resistência, a desmilitarização da polícia, entre outros pontos, foram reivindicações mais ou menos transversais a todos os grupos, e não houve nenhuma resposta por parte dos governos estaduais, que são responsáveis pela polícia, ou do governo federal, que tem uma política federal de segurança pública.

Essas demandas foram muito pouco atendidas, muito pouco escutadas e levadas em consideração e são, para mim, o grande déficit de 2013.

Correio da Cidadania: O que diria, neste sentido, sobre o enfrentamento policial aos manifestos que têm se espalhado por todo o país?

Pablo Ortellado: A atuação da polícia foi muito ruim. Foi muito violenta, marcada por abusos. E é por esse motivo que o tema da reforma da polícia está no alto da agenda dos manifestantes, embora esteja num lugar muito baixo na agenda dos governantes.

Essa má atuação da polícia, muito violenta, muito arbitrária, totalmente fora da lei, totalmente desregulada, exige um conjunto de medidas regulatórias que precisam ser enfrentadas. A mais óbvia delas é a regulamentação do uso de armas menos letais, o fim dos autos de resistência e a desmilitarização da polícia.

Correio da Cidadania: O que dizer, face a esse contexto, dos chamados black blocks e de toda a polêmica que têm trazido à cena política nacional? Como encara este fenômeno?

Pablo Ortellado: Eu acho que o black block foi um fenômeno superdimensionado e muito criminalizado. Este fenômeno dos black blocks foi tratado pelo poder público como uma ação absolutamente arbitrária, não razoável, beirando o irracional, a criminalidade e o terrorismo. Quando na verdade é uma tática que tem uma história, um objetivo discutido. Como todo tipo de tática, de estratégia, tem a sua razão de ser.

Essa tática nasceu do esgotamento das fórmulas de desobediência civil não violenta, no contexto dos Estados Unidos, com o objetivo de resgatar a atenção dos meios de comunicação que não prestavam mais atenção na violência policial. Por meio de um ato de desobediência e a destruição de propriedade privada, que é o coração do Direito (dentro da atual ordem socioeconômica), com sua destruição simbólica, resgatou-se a atenção dos meios de comunicação que, na cobertura dos protestos, não davam mais atenção aos manifestantes e, sobretudo, à violência policial. Tal violência recaía sobre os manifestantes de modo que tornava impossível a tática de desobediência civil não violenta.

Como reação, desenvolveu-se essa estratégia de destruição de propriedade, que chama a atenção dos meios de comunicação e transmite uma mensagem ao poder econômico, ao poder do Estado, à transnacionalização da economia e assim por diante.

Ela tem uma racionalidade, do ponto de vista dos seus métodos de ação. É uma infração pequena. É uma infração ridícula. É quebrar vidraças e é de natureza não violenta. Mas foi muito criminalizada. Foram criadas operações especiais, investigações especiais, discutiu-se utilizar a lei contra o crime organizado com grupos que estavam empreendendo essas táticas... Com certeza, se a lei contra o terrorismo estivesse em vigência, já seria mobilizada para tal caso, uma absurda desproporção em relação ao que significa efetivamente o black block.

Correio da Cidadania: Com a proximidade da Copa e as exigências mercadológicas da FIFA, o país prepara algumas leis de exceção, a exemplo dos tribunais da copa e da possível tipificação criminal do terrorismo, algo inédito no país. Além disso, desde já avançam nos parlamentos outras leis discutíveis, como aquelas que proíbem máscaras nos atos e versam sobre “formação de quadrilha” em manifestações. O que você diria desse quadro, o que pensa que viveremos nas ruas em 2014?

Pablo Ortellado: 2014 vai ser um teste para a nossa democracia. Porque os compromissos que foram assumidos pela Copa do Mundo são muito pesados, são muito antidemocráticos. Foram compromissos muito grandes, assumidos de uma maneira, digamos, muito vertical pelo governo federal, envolvendo o respeito aos direitos civis e aos nossos direitos políticos.

Assim, nós temos restrições à liberdade de expressão, restrições à liberdade de associação e em relação à capacidade que temos de fazer oposição. Nós abrimos mão da nossa soberania. Nós somos obrigados a aceitar e implementar um conjunto de leis e medidas de proteção de propriedade intelectual que são contrapartidas ao acordo feito com a FIFA. E tudo com um custo democrático muito pesado. Porque os retornos prometidos em termos de legado, visibilidade do país e aumento do turismo internacional são projetados para o futuro. E, de acordo com os estudos recentes feitos pela universidade, são retornos muito duvidosos.

No entanto, os custos democráticos são muito altos. Eles envolvem a suspensão de direitos civis muito básicos, as remoções de população em cidades, projetos urbanísticos de grande impacto social. Já estamos pagando, a população brasileira já está pagando o preço de tudo, e o retorno é muito improvável, talvez incerto.

Correio da Cidadania: Como tem visto a atuação da mídia em face a todos estes acontecimentos?

Pablo Ortellado: Eu acho que os meios de comunicação melhoraram a cobertura. Estão muito mais sensíveis com as mobilizações sociais e os protestos de rua, obviamente mais do que eram em junho, mas ainda prestam muito pouca atenção na violência policial.

A violência policial é o tema mais sub-noticiado, principalmente se tomarmos como comparação a criminalização dos movimentos sociais. A destruição de vidraça ganha muito mais destaque nos meios de comunicação de massa do que o assassinato de pessoas na favela da Maré.

Eu acho que desproporções como esta, entre a cobertura da destruição de vidraças e o assassinato de seres humanos, é o grande déficit que ainda notamos na cobertura dos meios de comunicação, no que diz respeito a essa nova mobilização social.

Correio da Cidadania: O que pensa da aparição de outra das novidades de 2013, no caso, a Mídia Ninja e atores similares?

Pablo Ortellado: Acho que houve vários novos atores que tentaram, por novos meios, sobretudo a internet, romper o padrão de cobertura dos meios de comunicação e contribuíram para chamar a atenção pra algumas coisas que os meios não notaram.

Mas, por mais que o advento seja promissor, acho que uma parte muito grande, principalmente ao alcance de massa, em volume e atenção, ainda está muito concentrada nos grandes meios. Eles ainda têm uma forte responsabilidade, por conta do grande poder que detêm, capazes de atingirem populações de dezenas de milhões de pessoas.

Correio da Cidadania: O ano de 2013 encerrou-se com adiamento da votação do marco civil da internet. Como tem enxergado a condução da pauta da urgente democratização, regulamentação e regulação das comunicações nesse cenário?

Pablo Ortellado: Tenho esperanças de o Marco Civil ser votado em 2013. Nesta semana (a primeira de dezembro), houve uma movimentação no congresso pra tentar acelerar sua votação. Vamos ver. Mas penso que a pauta da regulamentação dos meios de comunicações é a grande ausência das três últimas gestões do Partido dos Trabalhadores, que carrega tal reivindicação em seus programas, porém, sem dar prioridade política. Acredito que nada aconteça em 2014, ano de eleição, por ser um tema extremamente sensível aos meios de comunicação, que ainda causam muito impacto eleitoral. Fico aguardando mais um pouco, sem muita esperança, se em 2015 veremos mudança de tratamento a este tema.

O Marco Civil talvez seja a iniciativa mais avançada, com mais chances de ser aprovada. Mas precisamos fazer a revisão da política de concessão de TV, a regulamentação da propaganda, dos conteúdos e seu perfil, da propriedade cruzada, ampliar o espaço dos meios comunitários e não comerciais, fortalecer o sistema de radiodifusão pública... Um enorme rosário de medidas para o campo da comunicação, que mal começaram a ser discutidas e que creio ser o grande déficit dos últimos dez anos.

Correio da Cidadania: Se 2012 já havia se encerrado marcado pelo chamado Mensalão, 2013 o trouxe à mesa de modo que se pode dizer espetacular. O que pensa deste episódio e de sua visibilidade e repercussão pela mídia? O que tudo isto diz de nosso contexto político?

Pablo Ortellado: Vou estender meu juízo para 2014, onde teremos o julgamento do chamado mensalão mineiro, teremos o encaminhamento dos escândalos de corrupção do metrô de SP;  espero 2014 para ver se o tratamento dos meios de comunicação e do nosso sistema judiciário a estes temas será equivalente ao tratamento dado ao chamado caso do mensalão.

Eu fico aguardando ansiosamente, pra ver se existe de fato uma disposição do sistema de encarar com muito rigor tais acusações de corrupção, independentemente de procederem ou não; se esta disposição independe de coloração partidária ou se simplesmente esse esforço sobre o mensalão petista foi desigual e orientado pelo interesse de um partido político.

Correio da Cidadania: A espionagem internacional esteve no centro dos debates sobre mídia e comunicações em 2013. O que pensa de toda a celeuma em torno à questão e à forma como governo e mídia responderam a ela?

Pablo Ortellado: Acho que o governo fez bem, reagiu de forma relativamente boa. A Dilma respondeu com força nas arenas internacionais a certas pressões que sofreu, no sentido de responder com mais pragmatismo e menos força retórica. Deu uma resposta dura, que pensei ser a mais adequada ao momento. Esse episódio permitiu que o Marco Civil, que andava meio travado, retornasse à pauta legislativa. Espero que seja aprovado.

Mas, na verdade, a grande medida regulatória que teria impacto sobre esse cenário, a lei de proteção de dados pessoais, está completamente travada. Ainda está no Ministério da Justiça, não foi enviada ao Legislativo. É a principal lei que permitirá à cidadania brasileira ser protegida dos abusos dos governos.

Correio da Cidadania: Alguma diferença relevante entre os dois governos, Lula e Dilma, no tema específico das comunicações, e também em suas respectivas conduções política, econômica e social da nação? Vislumbra chances de avanço em 2014?

Pablo Ortellado: Acho que eles são muito parecidos, mais parecidos que diferentes. Esperava-se mais. Os avanços que temos são desdobramentos do que aconteceu nos períodos anteriores. Não vi nada no governo Dilma de muito novo acontecer. Espero que, num eventual novo mandato, nós tenhamos novidade. Principalmente nos campos onde temos políticas realmente muito ruins, isto é, meio ambiente, cultura e comunicação.

Correio da Cidadania: Qual a sua opinião quanto ao cenário eleitoral que se está armando para 2014? Arrisca algum palpite?

Pablo Ortellado: Acho que o cenário para 2014 é de reeleição da Dilma, como mostram as pesquisas de opinião, a não ser que os protestos embaralhem as cartas, uma possibilidade bastante grande. Por isso, é muito importante o governo rever os compromissos que assumiu e também ter uma postura de respeitar o direito de discordar. Os cidadãos brasileiros têm direito de discordar dos compromissos assumidos pelo governo em nome dos megaeventos esportivos. A cidadania brasileira tem o direito de discordar e um governo progressista deve reconhecer tal direito.

Correio da Cidadania: Acredita que haja espaço nesse cenário para a entrada de uma esquerda que apresente novidades e receba atenção do grande público eleitor?

Pablo Ortellado: Não. Acho que teremos mais do mesmo. Penso que teremos a continuação de alguns avanços sociais que tivemos, até significativamente. O melhor cenário é a continuação do que já está: alguns avanços sociais e as demais áreas muito comprometidas. Segurança pública muito ruim, política ambiental e indígena muito ruins, política cultural estacionada e política de comunicações num verdadeiro desastre.

Correio da Cidadania: Você possui uma visão esperançosa para o futuro das movimentações sociais que vêm rondando o mundo, desde a primavera árabe até a grande quantidade de movimentos ‘Occupy’ que têm varrido diversos países, passando por alguns protestos massivos na Europa e, agora, os do Brasil em 2013?

Pablo Ortellado: O meu otimismo todo reside neles. Penso que o povo brasileiro acabou de dar uma grande demonstração de força e conseguiu uma grande conquista social, que foi a redução da passagem em mais de 100 grandes cidades brasileiras. Espero que seja um aprendizado de que a luta e a mobilização sociais trazem benefícios sociais concretos. E que a difusão de tal aprendizado permita avanços nos setores onde a política institucional está bloqueada há dez anos, através das más performances do governo federal em política indigenista, ambiental, cultural e de comunicações. Espero que esse legado reflita em mobilização social que pressione o governo nas áreas onde seu desempenho é muito ruim.

Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.