por Elídio A. B.
Marques
Os
governantes das maiores cidades e estados do Brasil deram uma cartada: voltaram
atrás no aumento das passagens e, ao mesmo tempo, deixaram claro que cumprirão
os contratos que prevêem o lucro garantido (e obscuro) das empresas privadas
que operam o sistema. Fizeram mais: anunciaram que punirão a população com
cortes dos gastos sociais.
O movimento,
que já não era apenas pelos 20 centavos, muda de patamar mais uma vez em poucos
dias. Vê-se diante da necessidade de aprofundamento de suas bandeiras. Fica
claro que não basta a redução imediata, mas a reestruturação do transporte como
condição material de acesso à cidade. Por que tal acesso tem que ser
mercadoria? Por que teria que ser proporcional à riqueza de cada um? Por que
tem que ser privado, garantidor do lucro de poucos?
A redução
anunciada pode ser uma oportunidade de ampliar a percepção de que a mobilização
vale sim à pena. É uma derrota do “não adianta nada” e isso tem que ser muito
valorizado. É um erro menosprezar. Ao mesmo tempo, mostra como a bandeira da
redução, sem encarar o problema de distribuição de riqueza que estava por trás
dela tinha limitações, que agora podem ser novamente encaradas.
Recapitulando…
O movimento
que agora se tornou multitudinário começou com pequenos atos há poucos dias
contra o aumento do preço do transporte urbano. No Brasil, ele é muito caro e
de má qualidade. A forte priorização da venda de automóveis pelos últimos
governos do PT (com crescentes e sucessivas isenções de impostos à indústria
automobilística e aos combustíveis fósseis) fez o trânsito das cidades piorarem
rapidamente nos últimos anos, agravando a situação dos que usam o transporte
público. Aquelas primeiras manifestações foram brutalmente reprimidas pela
polícia, um aparato militar herdado da ditadura, que nunca foi minimamente
adequado aos padrões de qualquer “Estado de Direito”. A grande mídia, um
oligopólio controlado por pouquíssimas famílias, promoveu sua habitual campanha
de criminalização e desmoralização do movimento. No entanto, setores
significativos da sociedade, até então inertes, somaram-se aos manifestantes
iniciais e tornaram os movimentos multitudinários. Um estudo sério mostra que
havia mais de 150 mil pessoas na manifestação do Rio de Janeiro no dia 17 de
Junho, provavelmente a maior em 20 anos. É claro que as motivações dizem
respeito não apenas à questão dos transportes, mas a um conjunto de insatisfações
represadas pela “pax” instalada nos últimos dez anos sob a coalizão do PT –
partido que foi a principal expressão da esquerda nos anos 80 e 90 – com
inúmeros partidos abertamente conservadores. A grande mídia e parte da direita
ajustaram imediatamente seus discursos e passaram a tentar “ressignificar” o
movimento, impondo-lhe bandeiras mais genéricas e conservadoras como “contra a
corrupção”. Mas há um importante setor consciente que procura manter e
aprofundar seu significado mudancista e suas bandeiras de distribuição
econômica.
As notícias
dos dias 18 e início deste dia 19 apontam para o fortalecimento desta direção.
Os movimentos não têm uma direção política clara, notadamente no Rio de
Janeiro, havendo tensões entre as diversas correntes estudantis ligadas a
partidos de esquerda, especialmente os de oposição, e segmentos céticos em
relação a organizações. Minoritariamente, há o desafio dos “infiltrados” pela
polícia e a extrema-direita. Deve-se observar que o movimento é mais voltado
para os governantes locais, ainda com pouca consciência classista e pouco
desgaste para a burguesia, o que poderá mudar nos próximos dias.
Algumas
prefeituras começam a ceder e a reduzir o valor das passagens. No entanto, isso
tem sido feito basicamente pela redução de impostos e realocação de recursos
sociais, ou seja, uma “distribuição” sem alterar o lucro das empresas e sem
arranhar nenhuma estrutura econômica.
A plenária
mais significativa ocorrida no Rio no dia 18 de Junho conseguiu se afastar das
tentativas de levar o movimento para a direita e manter a reivindicação
econômica pela redução das tarifas, a luta contra a violência policial e
agregou um elemento importante: a luta contra o monopólio dos meios de
comunicação! Ao contrário de São Paulo, em que esta ideia é mais forte, ainda
não há uma clareza sobre a reivindicação da gratuidade do transporte urbano.
A seguir
algumas modestas sugestões de um militante que vem de outros momentos sobre
como lidar com os desafios atuais do movimento:
1- Defender o
direito à cidade e o transporte gratuito
As lutas em
curso se iniciaram em torno de um tema crucial: a liberdade real de locomoção
na cidade, que vai além do abstrato “ir e vir” que procura esquecer – ou fazer
esquecer – sua condicionalidade econômica. Está em causa o direito à cidade, à
sua fruição, à dignidade da existência nela. A bandeira da redução das tarifas
pode já não ser a única, mas é um foco fundamental. É necessário começar a
reivindicar algo que vai além do imediato e questionar o pagamento individual pelo
transporte urbano, que produz cada vez mais injustiça e insustentabiliade. As
cidades estão inviabilizadas pelo transporte individual. Um transporte público,
gratuito e de qualidade é um caminho para garantir uma vida que valha a pena
aos que moram nos centros urbanos.
2- Se alguém
precisa ganhar, alguém deve perder: a luta é distributiva
Seria uma
derrota se a luta em curso terminasse apenas por reforçar o caminho já vigente
das isenções fiscais para as grandes empresas. Ao contrário, é preciso ficar claro
que se os mais pobres precisam ganhar, pagando menos pelo transporte, os
grandes beneficiários pelos seus deslocamentos, os mais ricos, devem pagar.
Como? Através da revisão dos impostos sobre a propriedade e sobre os veículos
mais caros, mais poluentes e que ocupam mais espaço. É comum hoje que um imóvel
na zona sul do Rio de Janeiro pague de imposto 0,02% anuais (1 real pra cada 5
mil de valor de mercado), enquanto um trabalhador ou estudante pode gastar 20%
de um salário mínimo para se transportar mensalmente.
As margens de
lucro das empresas precisam ser colocadas em causa. As contas abertas e
avaliadas publicamente. Seu caráter privado deve ser democrática e claramente
discutido e decidido. A Fetranspor, do Rio, e suas congêneres precisam ser tão
alvo das manifestações quanto os prefeitos e governadores. Do contrário, caímos
no jogo de “culpar os políticos de tudo, para não culpar as elites econômicas
de nada”.
3- “Tome
partido e abra-se ao diálogo”
O crescimento
do movimento produziu o encontro entre a militância que está cotidianamente nas
lutas com muitos que recém chegaram. Há estranhamentos, sem dúvida. O
proibicionismo de partidos é uma posição antidemocrática e pouco esclarecida e
a presença das organizações é legítima e importante.
A rejeição,
no entanto, precisa ser compreendida como resultado, em parte, de um processo
de decepções acumuladas nas últimas décadas. Aos “partidários” cabe a
responsabilidade de estabelecer uma relação respeitosa e dialógica real com os
reticentes. A sensação de que os “organizados” dão algumas exageradas
“surfadas” em certos momentos dos movimentos não é um delírio plantado pela
CIA; tem bases em fatos reais.
É preciso
aguçar as sensibilidades: os partidos já não têm o monopólio da circulação de
informações alternativas dentro dos movimentos e têm boas razões para saber que
estão longe também do monopólio da verdade e da luz. Mas guardam memória,
conhecimento, experiências acumuladas das quais não se pode abrir mão. Os que
gritam contra eles deveriam saber que são uma invenção “nossa”, dos “de baixo”,
uma luta que existe inclusive nos dias em que não há atos marcados. Alguns há
já quase um século. Conquistaram a duras apenas até mesmo o direito de estarmos
todos juntos na rua hoje. Se uns não sabem disso e outros não sabem tantas
outras coisas, que abram-se os canais na melhor medida possível.
Não podemos
ser inocentes: nem todos o são. Há segmentos autoritários conscientemente
infiltrados. Estes precisam ser identificados e contra eles é preciso que o
movimento se previna. Um mal inevitável nos dias que correm em qualquer
movimento significativo.
4- A direita
joga, qual a novidade?
A “adesão”
com intenções distorcionistas de parte da mídia dominante não é nenhuma
novidade. Sempre acontecerá com movimentos que rompam a barreira do isolamento
que ela própria tenta impôr. Neste momento surge a tentativa de assimilação, de
mudança de significado. Cabe aos setores conscientes disputarem este
significado: a própria clarificação e consistência das bandeiras cumprirá nisso
um papel fundamental. É sempre assim, os movimentos emancipatórios nunca jogam
sozinhos.
5- A Polícia
Militar: em boa hora para acabar! Pelo fim da perseguição a manifestantes.
O que as
polícias militares fizeram com os manifestantes nos últimos dias é o que faz
cotidianamente nas periferias e favelas do país; a mudança foi de cenário e
endereço. E executa aquilo para o que foi feita: submeter violentamente jovens,
trabalhadores e indisciplinados em geral. Trata-se de um resquício da ditadura,
completamente inadequado a qualquer expressão mínima de democracia.
É preciso
defender a alteração profunda da estrutura das forças de segurança no país,
incluindo os debates e caminhos para dar esse passo de transição para a
democracia e que já foi indicado até mesmo por organismos internacionais: a
desmilitarização da polícia. Do mesmo modo, a utilização de prisões sem
fundamento para intimidar os movimentos sociais, bem como táticas de
intimidação, espionagem e provocação são inadmissíveis. Medidas fortes, claras
e consistentes por parte do governo federal e sua ampla base legislativa seriam
tomadas …se tivessem essa vontade política. Se eles não a tem, temos que
ensiná-los a ter.
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