por Eduardo
D`Albergaria
Depois de
passar a noite boquiaberto ao ver uma multidão de jovens ocupar o teto do
Congresso nacional, chego em casa e a única coisa que as pessoas comentam nas
redes sociais são as manifestações massivas que se alastraram por todo o país.
Dos meus
amigos “comuns”, alguns de presença bastante “inusitada” nesse tipo de “evento
social” (atos políticos), leio a alegria de terem participado ou visto as
manifestações.
E em muitos
amigos militantes li comentários assustados com algumas palavras de ordem e
posturas conservadoras que viram na marcha. Teria a direita “cooptado” as
“nossas” marchas?!
Eu também
fiquei desconfortável com algumas palavras de ordem que ouvi. No meio da
multidão que se aglomerava na chapelaria do Congresso ontem, vi uma senhorinha
de megafone na mão gritar “Dilma é terrorista” e, em seguida, puxar a palavra
de ordem “Dilma roubou, matou e torturou”, chamada que logo foi seguida por
cinco rapazes que estavam em volta dela – e reproduziam tudo o que ela puxava
pelo megafone. Eu não aguentei… Fui até ela e disparei exaltado: “você tá
louca? Vai puxar ‘Bolsonaro presidente’, também? Se tem alguma coisa que a
Dilma fez de bom na vida foi lutar contra a ditadura. Você é a favor da
ditadura?”. E ela respondeu “eu não”. E continuou a puxar outras palavras de
ordem sorrindo para mim, com cara de surpresa por um doido (no caso eu) se
exaltar pelo que ela falou.
Já tinha
presenciado outros gritos “estranhos” na manifestação de sábado em frente ao
Estádio Mané Garrincha. Muitas vezes o clássico “polícia é para ladrão” (que
desconhece o que é criminalização da pobreza e genocídio da população negra).
E vira e mexe
o cu “aparecia”: “ei, FIFA, vai tomar no cu”, “ei, Globo, vai tomar no cu”. E
todas as vezes em que alguém do PSTU surgia com uma bandeira: “PSTU, vai tomar
no cu”.
É verdade que
a referência ao sexo anal, uma proibição moral cristã dos últimos séculos, pode
ser considerada uma visão conservadora. Mas os alvos demonstram que aquela
massa, na maioria das vezes, entendia quem eram os “inimigos”: a FIFA, uma
empresa que submete países inteiros aos seus interesses, ficando com os lucros
dos jogos, enquanto os custos são “socializados” por toda a população; a Globo,
a mais forte empresa de comunicação do Brasil, que na última semana atuou para
criminalizar a luta social. Os manifestantes acertavam o alvo, mas não da forma
que esperamos.
A ojeriza aos
partidos aponta um certo grau de conservadorismo: demonstra que a maioria dos
presentes “compraram” a ideia tão propagada pela mídia corporativa de que
“política é algo ruim” (sendo os partidos a representação máxima do que é
política).
Os meios de
comunicação empresariais constroem um imaginário do que é a corrupção – que só
envolve os chamados “políticos” e alivia a barra das grandes corporações, que
são quem realmente opera a corrupção como instrumento de uso do Estado pelos
seus interesses. Na medida em que a população rejeita a política (e inclusive a
política partidária, que é o mecanismo de expressão de posições em nossa
limitada democracia representativa), ela está abrindo mão do único instrumento
de transformação da realidade – sem política é a “economia” quem governa a
vida. E isso é, sem dúvida, algo conservador.
Mas a
rejeição aos partidos também carrega uma dimensão positiva: a rejeição à
política institucional, viciada, que vive uma profunda crise de legitimidade. E
nosso papel não é salvar a democracia representativa, mas, a partir desse
sentimento antipartido, propor formas mais radicais de democracia.
De qualquer
forma, só de se colocarem em marcha, essas pessoas já estão fazendo política. E
elas precisam ser avisadas disso.
No meio
daquele mar heterogêneo de pessoas e palavras de ordem ouvi muita coisa
interessante. “Fora Feliciano” foi cantado muito vezes mais do que o “Sarney
Ladrão! Devolve o Maranhão”. E em vários momentos foram cantadas palavras de
ordem sobre a Copa, defendendo inversão de prioridades: “da Copa eu abro mão,
quero dinheiro pra saúde e educação”.
Mas não é de
se assustar o perfil heterogêneo das marchas de ontem. Essas vozes
conservadoras são expressão das ideias das maiorias sociais (do pensamento
hegemônico, com suas contradições e temporalidades).
Essa ampla
adesão, inclusive de gente que as marchas não costumam alcançar, tem que ser
entendida como resultado de uma intensa disputa política que travamos na última
semana, e vencemos! Ao custo de muita mobilização, agitação nas redes e nas
ruas, e de muito suor e sangue dos manifestantes em São Paulo, Rio de Janeiro,
Brasília…
E muita
criatividade: que explorava as contradições da criminalização do movimento,
“sou a favor da unificação das Alemanhas, mas quebrar o muro é vandalismo!”,
que confrontava matérias de um mesmo jornal comparando a abordagem sobre as
manifestações na Turquia com os atos no Brasil…
Na semana passada
a linha política do andar de cima era criminalizar a luta social, dizer que
qualquer mobilização deve ser proibida para não incomodar o “direito de ir e
vir”. O simples ato de manifestar seria vandalismo. A polícia atacava de forma
truculenta a multidão, dispersava manifestantes, despertava raiva e
potencializava a ação violenta de grupos anarcopunks. E em seguida a mídia
corporativa entrava em cena para reforçar a ideia de que as passeatas eram
violentas. Isso gerou uma espiral de violência policial, em que sua própria
ação violenta gerava legitimidade para ela ser ainda mais violenta. Mas o
“monstro” da violência policial saiu do controle: no ato de quinta-feira
(13.06), só da Folha de São Paulo foram 7 jornalistas agredidos, sendo o caso
que ficou mais conhecido o da jornalista que tomou um tiro de borracha no
rosto. Outros tantos jornalistas (do UOL, Carta Capital) foram presos –
inclusive por portar um perigoso líquido, o vinagre.
Vídeos no Rio
de Janeiro, São Paulo, Distrito Federal mostravam que, momentos antes dos
ataques policiais, as manifestações eram pacíficas. No caso de Brasília, um
vídeo desmoralizou o governador (Agnelo, PT), que mentiu ao dizer que a polícia
agiu, inclusive atingindo torcedores que entravam no jogo do Brasil, porque os
manifestantes estariam tentando invadir o estádio. Mas as imagens mostram os
manifestantes sentados no chão quando o comandante da operação ordenou que a
cavalaria avançasse sobre a manifestação.
Um olhar
positivo da população sobre as manifestações se consolidou a partir das
denúncias da violência desmedida, aliado ao enorme caldo de descontentamento
popular com os gastos da Copa, o preço das passagens e a qualidade do
transporte público e dos serviços de saúde e educação.
A vitória foi
tão expressiva que a mídia precisou mudar sua abordagem sobre as marchas.
Jabor, tantas vezes o intelectual orgânico do andar de cima, “reconheceu” que
errou e passou a defender a legitimidade das manifestações.
A mídia
empresarial mudou sua tática. Resolveu, dentro do possível, invisibilizar as
marchas. Ali Kamel mandou tirar do ar o especial de 15 minutos sobre as marchas
que iria ao ar no Fantástico do último domingo (16.06).
Como nos
lembra Safatle, no seu magistral artigo na Folha de São Paulo (18/06), “há
várias maneiras de esconder uma grande manifestação”. Você pode fazer como a
Rede Globo e esconder uma passeata a favor das Diretas-Já, afirmando que a
população nas ruas está lá para, na verdade, comemorar o aniversário da cidade
de São Paulo.
Mas você pode
transformar manifestações em uma sucessão de belas fotos de jovens que querem
simplesmente o “direito de se manifestar”. Dessa forma, o caráter concreto e
preciso de suas demandas será “paulatinamente calado”.
A própria
Folha brada em sua capa que a marcha agora é “contra tudo”.
Mas existe
outra tática que vem sendo usada pela mídia corporativa e as forças policiais:
mostrar os atos de vandalismo dos punks como uma exceção e tentar atrelar a
oposição de esquerda ao governo a esses grupos. A Folha afirmou que seria o PSOL
quem os estaria recrutando (hilário: os anarquistas agora seriam “dirigidos”
por uma organização partidária).
No caso de
Brasília, o governo petista criou uma história fantasiosa de que militantes do
grupo B&D estariam pagando ativistas para comparecerem às manifestações.
Procurando intimidar o movimento social organizado, e tentar impedir que ele
canalize o sentimento de indignação popular para ações políticas efetivas.
Está aberto
um período de disputa com a mídia corporativa do imaginário destas manifestações.
Supor que a forma mais eficaz de confrontar os elementos conservadores destas
marchas é levantarmos bandeiras de nossos partidos é colocar os partidos
políticos no lugar que os manifestantes já esperam.
É hora de
mostrar outra forma de construção e disputa política. É papel das organizações
de esquerda se apresentarem como partes do processo. Desde as marchas da
corrupção em Brasília (uma manifestação com perfil BEM mais esquisito do que a
Marcha do Vinagre de ontem), a Cia Revolucionária Triângulo Rosa, coletivo sexo
diverso do DF, tem participado das marchas com coluna própria. Pautando a luta
pela liberdade sexual.
No sábado,
quando o restante da manifestação mandava quem quer fosse “tomar no cú”,
puxávamos um “libertem o cú, libertem o cú”, e momento seguinte as pessoas se
tocavam do tom equivocado de sua palavra de ordem e mudavam o grito. O “Globo
vai tomar no cu” virava um “o povo não é bobo, abaixo a rede Globo”.
Quando
gritavam “fora partido”, gritávamos, junto com outros coletivos, “tome partido!”.
Como não estávamos “uniformizados” com camisas e bandeiras, a recepção de
nossas palavras de ordem tinham muito mais eco na multidão.
A Cia
Revolucionária Triângulo Rosa aglutina diversos militantes que não são filiados
a qualquer partido, mas entendem a importância de se organizar, inclusive para
disputar espaços na institucionalidade, porque vivem uma relação saudável de
autonomia e construção coletiva com militantes partidários que não tentam
cooptar o movimento.
A marcha de
ontem (17.06) teve uma dimensão muito maior, aumentando em muito a dificuldade
de fazer a disputa de imaginário.
Nosso
desafio, para impedir que as marchas descambem para a direita, é reforçar e
construir frentes entre diversos movimentos sociais para pautar politicamente a
marcha. Com faixas politizadoras, bandeiras dos movimentos sociais, camisas dos
partidos (camisas nunca incomodam e são uma expressão importante de adesão
partidária à marcha).
Nossa real
disputa não é convencer as pessoas que o PSOL é o partido (ou nossas
correntes!) que melhor representa aquela manifestação, não é fazer parecer que
a marcha é nossa, por meio de uma jogada manjada de distribuir uma bandeira por
militante e distribuir faixas estrategicamente na frente do ato. Tampouco
tentar projetar nossas lideranças, quem sabe conseguindo que elas apareçam em
um espaço da mídia corporativa. Nossa tarefa central é fazer com que essa
juventude se mantenha em movimento e se organize, seja no MPL, seja no
movimento estudantil, ou em qualquer outro movimento.
Nossa tarefa
central é formar politicamente essa multidão para que esses militantes entendam
as engrenagens do sistema do capital e estejam dispostas a superá-lo. Nossa
tarefa central é demonstrar, na prática, que temos uma postura de construção
dos movimentos primando por sua autonomia. A pedagogia do exemplo é a arma mais
eficaz contra o antipartidarismo.
Travemos
mais esse bom combate. E se tivermos a mesma sabedoria que tratamos no debate
sobre a legitimidade das marchas, teremos mais uma vitória!
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