por Marcelo Badaró Mattos
Há
momentos na história em que o ritmo dos acontecimentos parece se acelerar. Nos
últimos 15 dias a sociedade brasileira viveu conflitos de dimensões tais que há
pelo menos 20 anos não se desenhavam. As multidões tomaram as ruas das cidades
(grandes, médias e pequenas). Na noite de ontem (20/06), manifestações em cerca
de 400 cidades levaram milhões de pessoas aos atos. Não faz duas semanas que as
manifestações se iniciaram, tendo por pauta imediata a derrubada dos aumentos
nas tarifas de transportes urbanos. A intensa repressão policial aos primeiros
atos levou a que, nos últimos cinco dias, a luta transbordasse as pautas,
perfil dos manifestantes e dimensões originais das mobilizações. Na cidade em
que a multidão foi maior, o Rio de Janeiro, mais de 100 mil manifestantes foram
às ruas no dia 17 e no mínimo cinco vezes mais gente esteve no centro da cidade
ontem. Tudo isso mesmo depois que prefeitos e governadores recuaram e revogaram
os aumentos.
Diante
da intensa repressão policial aos primeiros atos e da cobertura favorável a
esta por parte dos monopólios da mídia, as manifestações ganharam uma dimensão
de contestação a esses dois polos fundamentais da dominação de classes no
Brasil de hoje: de um lado, o aparato repressivo ostensivamente utilizado no
dia a dia contra os segmentos mais precarizados da classe trabalhadora
(especialmente nas periferias e favelas da grandes cidades) e sistematicamente
empregado contra os movimentos sociais organizados de perfil mais combativo; de
outro, a fábrica de “consensos” ideológicos que tem na mídia monopolística sua
vanguarda mais ativa.
Diante
da persistência e crescimento das multidões nas ruas, o “partido da ordem” se
realinhou. Governantes, mídia corporativa e políticos de direita começaram a
elogiar as mobilizações como exemplo de cidadania, mas introduziram dois novos
elementos no discurso que difundiram. O primeiro foi uma distinção: entre os
cidadãos pacíficos e ordeiros nas ruas defendendo “um Brasil melhor” e a horda
de “vândalos” e “radicais”, estes últimos os que estariam envolvidos em
depredações e choques com a polícia. O segundo foi uma pauta: os manifestantes
se mobilizavam (ou deveriam se mobilizar) contra a corrupção, contra os
políticos em geral e, particularmente, rechaçavam (ou deveriam rechaçar) os
partidos de esquerda, cujo objetivo seria se aproveitar das mobilizações para
dirigir as massas para bandeiras que não seriam as suas.
O
primeiro mote, abria espaço para tentar resgatar a abalada legitimidade da polícia,
inclusive sua face mais violenta (seus Choques e Bopes), agora não mais para
bater indiscriminadamente, mas para conter os “vândalos” e “radicais”. Difícil
é estabelecer as mediações para os comandantes (os governadores reacionários
civis e os coronéis fardados) desse aparato repressivo. Ao longo da semana,
partiram de uma aparente liberalidade completa no início dos atos, combinada a
uma batalha localizada no final, contra grupos que misturavam massas revoltadas
com a repressão, nítidos provocadores e setores a soldo sabe-se lá de quem.
Transitaram em seguida para uma repressão ainda mais violenta que nos primeiros
atos, especialmente nos locais e dias de jogos da tal “Copa das Confederações”
(“da Fifa”, antes que eu tome um processo por uso indevido de name right).
No
Rio de Janeiro, na noite passada, o asfalto tremeu quando a PM empregou todo a
força que exercita em uso diário nas áreas periféricas e favelizadas. No
momento em que centenas de milhares de manifestantes se aproximaram da
prefeitura da cidade, uma ação “preventiva” disparou bombas e balas de borracha
na multidão, numa situação em que todos estavam privados de transportes
públicos (os ônibus não circulavam dada a própria manifestação e o metrô fechou
suas estações). Empurrando a multidão de volta ao Centro, os famosos
“Caveirões” da PM carioca começaram a circular “para limpar” a área (palavras
da própria polícia), fazendo uso de todo o arsenal militar a sua disposição
contra quem quer que estivesse nas ruas. Dezenas de feridos foram parar nos
hospitais da cidade em decorrência dessa ação que varou a madrugada.
Já
o segundo mote – o da definição de uma pauta difusamente nacionalista e
conservadora – gerou a incorporação aos últimos atos, agora ampliados para
novos setores sociais, de bandeiras (contra PECS, contra os “corruptos”), uma
indumentária (verde amarelo, bandeira nacional), cânticos (o hino nacional, os
slogans de propaganda futebolística da Globo) e gritos (“sem violência” e “sem
partido”), completamente adequados à linha conservadora, contraditoriamente
defendida pelos editorialistas e comentaristas dos mesmos veículos de
comunicação monopolísticos que, violentamente criticados pelos manifestantes,
tiveram carros queimados e esconderam seus repórteres da multidão com medo de suas
reações. E gerou algo bem mais grave. A direita organizada percebeu a
oportunidade, foi para as ruas e influenciou diretamente as manifestações, via
carros de som, faixas e slogans de grupos como o “Movimento Brasil”, ou mesmo
através de milícias pagas para atacar os militantes de partidos de esquerda e
movimentos sociais combativos, que chegaram a ser espancados por bate-paus da
reação em várias cidades do país, algumas vezes com respaldo de parte da massa,
ao som do coro “sem partido”.
Quando
as câmeras de tráfego do Centro do Rio pararam de gerar suas imagens, e os
canais de jornalismo das TVs por assinatura interromperam a transmissão ao vivo
da mesma região, ficou claro que, ao mesmo tempo que, embora a criação do
consenso conservador tenha dado algum tipo de resultado sobre o senso comum da
multidão, os governos abriram a caixa de Pandora da barbárie repressiva mais
generalizada. O desespero do governo federal tentando avaliar o grau da
instabilidade, naquelas mesmas horas, revelou que os que estão à frente do
aparelho de Estado ainda não sabem como retomar o controle do processo. Nem a
Fifa sabe o que fazer!
Há
uma crise política de proporções amplas em curso. Isso não respalda análises
apressadas, nem de que há riscos golpistas imediatos pela direita contra o
regime democrático, nem que a crise política já está gerando uma situação
“pré-revolucionária” que favoreça à esquerda. O desenho atual da dominação
burguesa no Brasil, que durante as últimas duas décadas combinou, tão
eficientemente, o aparato amplo de formulação de consensos com todos esses
instrumentos repressivos ainda parece ter muito fôlego para sustentar o regime
democrático em nosso “Ocidente periférico”. No entanto, ficou evidente que,
diante do primeiro movimento de contestação de massas, voltou a desmascarar-se
a velha face da “contra-revolução preventiva” (lembrando Florestan Fernandes),
que sempre caracterizou uma classe dominante que já nasceu, por aqui, sob o
temor da revolução dos “de baixo”.
O
desafio da esquerda socialista, dos autonomistas efetivamente contrassistêmicos
e dos movimentos sociais combativos é imenso neste momento. A multidão em luta,
nas ruas, foi acionada por esses setores, pelo acúmulo de suas denúncias e
mobilizações. Frente à contra-ofensiva da reação conservadora burguesa, porém,
o terreno das ruas está agora bastante minado para essas mesmas esquerdas e
seus movimentos. Para manter-se nele será preciso um salto: é necessário
construir unidade em torno de um programa mínimo de intervenção e só se pode
convocar novas manifestações com um grau de organização muito maior. Fóruns,
plenárias e espaços de articulação precisam ser criados imediatamente. Novas
manifestações não poderão ter apenas o (belo) perfil de festa popular, sem
liderança coletiva ou objetivos claramente delimitados (onde começar, onde e
quando parar e para quê), pois a reação conservadora aprendeu a lidar com os
atos, disputou sua direção e pode tomá-los para seus objetivos políticos. A
entrada em cena dos sindicatos, ainda muito tímida, a presença do MST nos atos
de ontem e as ações de outros movimentos sociais urbanos, como MTST, apontam
para a possibilidade concreta de que tal salto se materialize numa frente da
nova geração de manifestantes com as parcelas ainda combativas dos movimentos organizados
da classe trabalhadora. Quando isso acontecer, deixaremos de ser uma multidão
para ganharmos um perfil de classe. Por enquanto, isso é só uma possibilidade.
O cheiro de primavera que as primeiras
marchas trouxeram e que a enorme vitória da derrubada dos reajustes reforçou,
pode ser encoberto pelo odor do gás lacrimogênio e do spray de pimenta, assim
como nossas palavras de ordem podem ser abafadas pelo hino nacional e o “sem
partido” dos partidários da reação. O movimento cresceu, as contradições também,
e a capacidade de intervenção dos que lutam para que floresça um outro mundo
terá de evoluir na mesma proporção, pois as ruas precisam voltar a ser nossas.
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