"As ruas fervem em todo o Brasil. Jovens, e outros nem tanto, ocupam as cidades que o capital teima em tentar monopolizar para seu gozo exclusivo, exigindo transportes mais baratos e, cada vez mais, direito à livre manifestação. Com muito vinagre e fogo no lixão urbano, os manifestantes rebelados afrontam as bombas de gás, balas de borracha, e outras nem tanto, da repressão policial. Nos (tele)jornais, querem dirigir o que não puderam evitar, apresentando um vilão fantasmático: “a corrupção!”, para tentar desviar o foco da materialidade das contradições sociais que emergem com as centenas de milhares de pessoas nas ruas. Para eles, há os pacíficos e os vândalos. Bandeiras nacionais e hinos patrióticos representam a “verdadeira cidadania”, os partidos de esquerda seriam os “aproveitadores”. A linha é tênue, e varia conforme os humores dos manifestantes e as “sondagens de opinião”. Há quem, nas próprias manifestações, reproduza valores desse esforço ideológico para direcionar as mobilizações para a zona de conforto da classe dominante. Mas, os jornalistas dos monopólios da comunicação precisam se refugiar nos helicópteros e estúdios, porque sabem que a maioria ali não acredita no que dizem e nas ruas podem também ser brindados com o escracho dos que lutam. Lutam pelo que? O que explica a explosividade e a rapidez surpreendentemente desses acontecimentos? Aonde podem chegar? Qual o seu potencial? E os limites que precisam ultrapassar?" - Com esta breve introdução iniciamos nosso blog em junho de 2013. A luta continua e por isso este espaço continua aberto às analises!

quarta-feira, 3 de julho de 2013

As manifestações no Brasil do século XXI: apontamentos de um novo ciclo

por Edson Miagusko, professor UFRRJ


As jornadas de junho são um acontecimento político e inauguram um novo ciclo de ação coletiva no Brasil.Como acontecimentos não podem ser comparados a outras mobilizações.  Apesar das semelhanças com outras situações históricas (Campanha das Diretas, Fora Collor) é mais adequado inseri-las num novo ciclo que altera repertórios políticos, formas de contestação social e apresenta novos significados. Mesmo correndo o risco de errar, afirmo que estas mobilizações inauguram um novo ciclo de ação coletiva no Brasil que muda o diagrama pelo qual os movimentos sociais, partidos e a participação política devem ser compreendidos e serão impelidos a agir daqui para frente.

O inferno urbano é o motor dos protestos e a mobilidade urbana foi seu estopim. A péssima qualidade e carência de serviços públicos que atingem os moradores das cidades simbolizados no transporte foram percebidos não apenas em São Paulo, mas em cidades muito diferentes, e se alastraram rapidamente país afora. Se morar nas grandes cidades se tornou um inferno, sobretudo para os mais pobres, a mobilidade urbana se converteu no símbolo mais evidente deste modelo insustentável. No Brasil a população de automóveis explodiu, ainda mais com o subsídio à indústria automobilística. No Rio o aumento de veículos é de 10% ao ano, em Brasília 15% e em São Paulo mais carros são despejados nas ruas do que bebês nascem. A lição mais interessante destas manifestações foi mostrar que aquilo que a sociedade considerava mais irreal não deveriam ser propostas consideradas “tecnicamente inviáveis” como a tarifa zero, mas a própria condição kafkiana em que estamos mergulhados nas grandes cidades. Fomos transformados em baratas e nem mais sabemos disso.

Os limites da política atual são outro motor dos protestos. Trata-se de um  descontentamento profundo com os limites da política e que aparece como um divórcio entre representantes e representados e atinge todos os partidos e governantes, em todos os níveis de governo e em diferentes momentos de seus mandatos. Não se trata de um sentimento novo, é claro. Políticos nunca foram bem quistos pela população e partidos são vistos como máquinas de poder com baixíssimo compromisso público. Acrescenta-se a isso a condição brasileira de uma sociedade autoritária e excludente em que vigoram muitas vezes relações de clientela, tutela e cooptação e que tem dado sinais constantes de resiliência acima das ideologias. As jornadas de junho tiveram, à semelhança dos movimentos sociais do ciclo anterior, a horizontalidade e a ausência de hierarquias entre lideranças e liderados, dirigentes e dirigidos. Mas diferente dos movimentos sociais desse ciclo os manifestantes foram convocados de outro modo e rapidamente se transformaram num movimento de massas sem as mediações anteriores.

A ampliação do consumo sem a correspondente diminuição da desigualdade social é outro motor dos protestos. Nos últimos anos houve a ampliação do acesso ao consumo de milhões de brasileiros que passaram a obter determinados bens a partir do acesso ao crédito. De bens de consumo passaram a solicitar educação e saúde de qualidade, cada vez mais caras ou distantes desta parcela da população e que sofreram um processo de privatização que não se alterou, mesmo nos últimos anos. Se tomarmos os indicadores de renda e consumo nestas duas décadas de ajuste ao capitalismo global, o país melhorou. No entanto, o estranhamento é que ninguém aguenta mais. E mais estranho ainda é que ninguém percebeu tamanho mal-estar.

Os investimentos na preparação das cidades para a Copa do Mundo em contraste com os serviços públicos é outro motor dos protestos. A vultosa soma de recursos investidos para atender as exigências da FIFA e do COI em contraste com a péssima qualidade dos serviços desencadeou ondas de protestos nas cidades sedes da Copa. A reforma do Maracanã custou 1,2 bilhão de reais para reduzir à metade o número de lugares, em que negros e índios estão completamente ausentes das arquibancadas. Um dos lemas dos manifestantes passou a ser: “quero educação padrão FIFA” ou de modo irônico “está com o filho doente, leve num estádio”. A indignação se tornou tamanha que vimos, pela primeira vez, manifestantes declararem explicitamente que preferem hospital e educação de qualidade que a Copa do Mundo. Tamanho atrevimento e profanação acontecem não apenas porque ficou claro o engodo da renovação urbana promovida por megaeventos do gênero. A ficha caiu porque o escândalo são os enormes custos públicos que alavancam lucros privados inconcebíveis.

Milhões afluem pela primeira vez às ruas e há um corte geracional nas manifestações. Do ponto de vista da ação política, a geração que protesta nasceu no ciclo das diretas Já, passou pelo Fora Collor e ingressou na política num mundo bastante diferente. Do ponto de vista social um mundo completamente alterado, no trabalho, na família e na moradia, cujo impacto no mundo político só agora está sendo sentido em toda sua intensidade. Diferente do ciclo anterior que impulsionou as principais organizações populares e o PT e do ciclo de resistência ao neoliberalismo nos anos 1990, a geração que aflui é aquela que tem por referência o ciclo do PT no governo e não sua origem nos movimentos sociais e na ação política contestatória. Daí, parte de sua rejeição aos partidos e organizações de esquerda, identificados com a simbologia e o repertório político anteriores. A geração que protesta hoje é bem diferente em outro aspecto. É menos engajada em coletivos políticos na forma que conhecíamos antes. E tem um sentido mais individual, o que não significa necessariamente individualista. Mas, não significa que esteja completamente desatenta ao mundo. De certo modo, essa mobilização mostra o quanto essa juventude tem causas e se mobiliza fortemente.

Nestas semanas as manifestações obtiveram vitórias imediatas. A primeira vitória foi a redução das tarifas de transporte em várias cidades brasileiras. A segunda vitória foi fazer retroceder o poder dos governos a partir do sentimento popular. A terceira vitória foi colocar milhões em movimento discutindo política no cotidiano e pautando os limites da atual forma de democracia pouco porosa aos reais anseios populares. Talvez a manifestação mais interessante desses últimos dias foi a passeata dos moradores da Rocinha em direção à residência do governador que expressaram suas reivindicações em defesa de saúde, educação e saneamento e contrários à instalação do teleférico, obra decidida pelos governantes, mas considerada não prioritária pelos moradores que não foram consultados.

No atual momento as manifestações continuam fortes e se espalham para além dos grandes centros urbanos. Em algumas localidades como Nova Iguaçu, São Gonçalo, Seropédica, Juazeiro do Norte há protestos que impressionam pela quantidade de pessoas reunidas e pela percepção sobre a centralidade de determinados problemas locais. Em Seropédica, por exemplo, a fúria dos manifestantes se voltou contra a principal empresa de ônibus que atende a cidade e os pedágios. Isso desencadeou um processo de repressão aos manifestantes, com bombas de efeito moral em plena rodovia e queima de pneus. Os protestos podem desencadear processos interessantes ajudando a democratizar poderes locais pouco porosos a qualquer tipo de prática mais avançada. Isso, no entanto, está aberto como possibilidade a ser comprovada.

As manifestações reposicionaram os principais atores políticos e sociais. Os grandes meios de comunicação em sua maioria, mudaram completamente o sentido inicial de sua cobertura jornalística.Inicialmente, adotaram o discurso de apresentar os manifestantes como uma pequena minoria “radical” ou de jovens de classe média que nem utilizavam ônibus e de movimentos que praticavam atos violentos. A construção desse perfil levou editoriais a defenderem uma posição de repressão às manifestações, na expectativa de encerrá-las com o apoio da sociedade. Em São Paulo, isso levou à forte repressão das manifestações pela Tropa de Choque e pela Polícia que provocou enorme tumulto e ferimento em vários manifestantes e também em indivíduos que nem participavam das manifestações. Isso causou enorme comoção e desencadeou, de modo inesperado pela extensão e rapidez, atos em outras cidades. No Rio de Janeiro, os atos foram os maiores da história, mas com uma escalada de repressão cada vez mais crescente pela polícia. No atual momento, a cobertura midiática passou a construir a imagem da maioria de manifestantes pacíficos e ordeiros em antagonismo à pequena minoria de vândalos e baderneiros. Essa classificação só não vale para os protestos nas comunidades pobres, onde essa separação não é obedecida, o que tem levado a uma repressão ainda maior por parte do Estado. Como disse um morador da Maré: “as balas aqui não são de borracha, são de fuzil“.

O conflito retorna à política e há uma fadiga da estratégia de fazer mudanças sem rupturas. As mobilizações introduziram um nível de imprevisibilidade e incerteza na ação política, tanto de outros atores quanto do próprio governo. E todos estão buscando se reposicionar para conseguirem enfrentar este novo ciclo, mesmo que a disposição original não fosse essa. A presença dos movimentos sociais como atores políticos deve se tornar mais significativa, mas para isso também precisarão se reposicionar.

Os movimentos sociais e as formas de ação coletiva deste novo ciclo são outros, diferentes do anterior. E ao invés de compará-los talvez fosse mais interessante fazer uma espécie de etnografia em ato das manifestações. E algumas coisas saltam aos olhos. A primeira é o reaparecimento de movimentos da família da ação direta, no lugar dos movimentos sociais por políticas públicas. A outra é que muitas palavras de ordem nas manifestações decalcavam slogans publicitários (o grande despertar de uma marca de uísque ou o “vem pra rua” de uma montadora de automóveis). As manifestações que ocorrem agora tem um quê de postagem no Facebook: são cartazes em tamanho pequeno e que representam os milhões de cacos partidos desse espelho. A disputa agora se tornou instantânea.

É um erro imaginar que indivíduos que rejeitam partidos, que cantam “sem partido”, possam ser definidos em suas posições políticas de antemão. É claro que nas ruas (e também nas redes sociais) todas as posições se exacerbam e são hiperbolizadas. Mas, os indivíduos que se proclamam “sem partido” parecem mais os indignados com as condições atuais a partir do senso comum, que uma massa conservadora. É claro que a direita, a grande mídia, etc, disputam os sentidos e os rumos das mobilizações e que há uma direita social organizada e truculenta que disputa rumos. Mas, não há nenhuma novidade nisso, sobretudo na intensa disputa em manifestações sem lideranças e organizações. Aliás, seria o caso de retornar à pergunta de se estas não seriam as primeiras mobilizações de um novo ciclo no Brasil. Ainda é cedo para tirarmos conclusões, mas há um componente que se já estava presente em outras situações, nunca se apresentou com a intensidade de agora.

O governo Dilma também se reposicionou diante das manifestações e apresentou cinco pactos. a) o pacto da reforma política com a convocação de uma constituinte exclusiva e a realização de plebiscito e a transformação da corrupção dolosa (sic) em crime hediondo; b) o pacto da responsabilidade fiscal que garante a preservação da política econômica atual e o rigor fiscal no controle da inflação; c) o pacto da mobilidade urbana que propõe o investimento de 50 bilhões num fundo para o transporte; d) o pacto da saúde com a contratação de médicos estrangeiros para suprir a carência desses profissionais nas regiões mais distantes do país e nas periferias urbanas; e) o pacto da educação com a destinação de recursos de 100% dos royalties do petróleo da camada pré-sal para a educação. Como disse André Singer em artigo: “o governo Dilma tenta fazer o “drible Neymar”: faz uma abertura à esquerda na política, sinaliza um giro à direita na economia e sai pelo meio. Assim, o pacto proposto tem medidas que se tomadas em conjunto apontam em direções opostas.

A principal medida da reforma política deve ser recolocar na ordem do dia a participação popular. O governo Dilma propôs inicialmente a convocação de uma constituinte exclusiva com plebiscito para fazer a reforma política. Um dia depois, por não ter o apoio do PMDB e de sua base parlamentar e pela crítica de setores mais à direita e também à esquerda retirou essa posição e manteve a idéia da convocação de um plebiscito para decidir sobre os principais pontos da reforma política.

A reforma política não pode ser apenas uma reforma eleitoral. O governo deve inverter a lógica do plebiscito. As ruas demonstraram que no momento atual é mais legítimo um projeto de iniciativa popular com milhões de assinaturas que a construção de acordos e maiorias parlamentares, que foi a tônica até agora e vem sendo duramente criticada de maneira difusa nas manifestações. Esse projeto de iniciativa popular poderia cumprir o papel de um enorme movimento catalizador que ao partir das ruas recolocasse o papel da soberania popular como central nesta reforma. A própria proposta inicial do governo de convocar uma assembléia exclusiva partiu da constatação da enorme dificuldade de aprovação da reforma política pelos políticos que não modificariam nenhuma das regras que os beneficiam.

O sistema político se tornou endógeno e voltado para si mesmo. Instrumentos políticos como a revogabilidade de mandatos (ou recall) ampliariam o controle sobre a representação. No sistema atual, o povo escolhe os representantes, mas o sistema eleitoral é definido pelos próprios representantes, sem a mínima condição de interferência popular. No sistema atual o povo não tem poder sobre seus representantes. A introdução da revogabilidade dos mandatos expressaria a vontade popular em processo e um controle sobre a representação. Hoje quem elege não tem o poder de demitir o representante num período de quatro a oito anos, mesmo que ele traia por completo a confiança do representado.

As ruas tornam a disputa pelos sentidos da política no Brasil mais imprevisível. É ótimo que seja assim. Há muito tempo a política havia saído da rua, ao contrário de outras partes do mundo. Direita e esquerda pareciam diferenças que eram acionadas só em momentos eleitorais. Na gestão do Estado diferenças eram minimizadas e substituídas pela ideia do bom governo. E daí decorria o terrorismo do possível. É ótimo que o debate ideológico e a luta política tenham retornado entre nós. As ruas depois de anos voltaram a fazer parte da política. Alguma coisa acontece quando pela primeira vez na história o impossível tem lugar: num dia de jogo do Brasil, os brasileiros debateram política como discutem futebol. E ao separar futebol e política, ficam felizes pelo tetra da nossa seleção, mas continuam indignados na política e nas ruas.

(este texto foi base da minha intervenção no debate "Os movimentos sociais no Brasil recente", promovido pelo ICHS/UFRRJ)

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