São Paulo / São Paulo
Eduardo Viveiros de Castro dispara: iludido por noção
ultrapasada de progresso, Brasil pode desperdiçar oportunidade única de propor
novo modelo civilizatório
Entrevista a Júlia Magalhães
Qual é sua
percepção sobre a participação política do brasileiro?
Preferiria começar por uma
desgeneralização: vejo a sociedade brasileira como profundamente dividida no
que concerne à sua visão do país e do futuro. A ideia de que existe um Brasil,
no sentido não-trivial das ideias de unidade e de brasilidade, parece-me uma
ilusão politicamente conveniente (sobretudo para os dominantes) mas
antropologicamente equivocada. Existem no mínimo dois, e, a meu ver, bem mais
Brasis. O conceito geopolítico de Estado-nação unificado não é descritivo, mas
prescritivo. Há fraturas profundas na sociedade brasileira. Há setores da
população com uma vocação conservadora imensa; eles não integram
necessariamente uma classe específica, embora as chamadas “classes médias”,
ascendentes ou descendentes, estejam bem representadas ali. Grande parte da
chamada sociedade brasileira — a maioria, infelizmente, temo — se sentiria
muito satisfeita sob um regime autoritário, sobretudo se conduzido
mediaticamente pela autoridade paternal de uma personalidade forte. Mas isso é
uma daquelas coisas que a minoria libertária que existe no país, ou mesmo uma
certa medioria “progressista”, prefere manter envolta em um silêncio
embaraçado. Repete-se a todo e a qualquer propósito que o povo brasileiro é
democrático, “cordial”, amante da liberdade, da igualdade e da fraternidade – o
que me parece uma ilusão muito perigosa. É assim que vejo a “participação
política do povo brasileiro”: fraturada, dividida, polarizada, uma polarização
que não está necessariamente em harmonia com as divisões politicas oficiais
(partidos etc.). O Brasil permanece uma sociedade visceralmente escravocrata,
renitentemente racista, e moralmente covarde. Enquanto não acertarmos contas
com esse inconsciente, não iremos “para a frente”. Em outros momentos, é claro,
soluços insurreicionais esporádicos, e uma certa indiferença pragmática em
relação aos poderes constituídos, que se testemunha sobretudo entre os mais
pobres, ou os mais alheios ao teatro montado pelo andar de cima, inspiram
modestas utopias e moderados otimismos por parte daqueles que a historia
colocou na confortável posição de “pensar o Brasil”. Nós, em suma.
O que é
preciso para mudar isso?
Falar, resistir, insistir, olhar por cima do
imediato – e, evidentemente, educar. Mas não “educar o povo”, como se a elite
fosse muito educada e devêssemos (e pudéssemos) trazer o povo para um nível
superior; mas sim criar as condições para que o povo se eduque e acabe educando
a elite, quem sabe até livrando-se dela. A paisagem educacional do Brasil de
hoje é a de uma terra devastada, um deserto. E não vejo nenhuma iniciativa
consistente para tentar cultivar esse deserto. Pelo contrário: chego a ter
pesadelos conspiratórios de que não interessa ao projeto de poder em curso
modificar realmente a paisagem educacional do Brasil: domesticar a força de
trabalho, se é que é isso mesmo que se está sinceramente tentando (ou planejando),
não é de forma alguma a mesma coisa que educar.
Isto é só um pesadelo, decerto:
não é assim, não pode ser assim, espero que não seja assim. Mas fato é que não
se vê uma iniciativa de modificar a situação. Vê-se é a inauguração bombástica
de dezenas de universidades sem a mínima infra-estrutura física (para não falar
de boas bibliotecas, luxo quase impensável no Brasil), enquanto o ensino
fundamental e médio permanecem grotescamente inadequados, com seus professores
recebendo uma miséria, com as greves de docentes universitários reprimidas como
se eles fossem bandidos. A “falta” de instrução — que é uma forma muito
particular e perversa de instrução imposta de cima para baixo — é talvez o
principal fator responsável pelo conservadorismo reacionário de boa parte da
sociedade brasileira. Em suma, é urgente uma reforma radical na educação
brasileira.
“A floresta e a escola”, sonhava Oswald de Andrade. Infelizmente,
parece que deixaremos de ter uma e ainda não teremos a outra. Pois sem escola,
aí é que não sobrará floresta mesmo.
Por onde
começaria a reforma na educação?
Começaria por baixo, é lógico, no
ensino fundamental – que continua entregue às moscas. O ensino público teria de
ter uma política unificada, voltada para uma – com perdão da expressão – “revolução
cultural”. Não adianta redistribuir renda (ou melhor, aumentar a quantidade de
migalhas que caem da mesa cada vez mais farta dos ricos) apenas para comprar
televisão e ficar vendo o BBB e porcarias do mesmo quilate, se não
redistribuímos cultura, educação, ciência e sabedoria; se não damos ao povo
condições de criar cultura em lugar de apenas consumir aquela produzida “para”
ele. Está havendo uma melhora do nível de vida dos mais pobres, e talvez também
da velha classe média – melhora que vai durar o tempo que a China continuar
comprando do Brasil e não tiver acabado de comprar a África. Apesar dessa
melhora no chamado nível de vida, não vejo melhora na qualidade efetiva de
vida, da vida cultural ou espiritual, se me permitem a palavra arcaica. Ao contrário.
Mas será que é preciso mesmo destruir as forças vivas, naturais e culturais, do
povo, ou melhor, dos povos brasileiros para construir uma sociedade
economicamente mais justa? Duvido.
Nesse
cenário, quais os temas capazes de mobilizar a sociedade brasileira, hoje?
Vejo
a “sociedade brasileira” imantada, pelo menos no plano de sua
auto-representação normativa por via da midia, por um ufanismo oco, um orgulho
besta, como se o mundo (desta vez, enfim) se curvasse ao Brasil. Copa,
Olimpíadas… Não vejo mobilização sobre temas urgentíssimos, como esses da
educação e da redefinição de nossa relação com a terra, isto é, com aquilo que
está por baixo do território. Natureza e Cultura, em suma, que hoje não apenas
se acham mediadas, mediatizadas pelo Mercado, mas mediocrizadas por ele. O
Estado se aliou ao Mercado, contra a Natureza e contra a Cultura.
Esses temas
ainda não mobilizam?
Existe alguma preocupação da opinião pública com a
questão ambiental, um pouco maior do que com a educacional – o que não deixa de
ser para se lamentar, pois as duas vão juntas. Mas tudo me parece “too little,
too late”: muito pouco, e muito tarde. Está demorando tempo demais para se
espalhar a consciência ambiental, o sentido de urgência absoluta que a situação
do planeta impõe a todos nós. Essa inércia se traduz em pouca pressão sobre os
governos, as corporações, as empresas – estão investindo cada vez mais na
historia da carochinha do “capitalismo verde”. E pouca pressão sobre a grande
imprensa, suspeitamente lacônica, distraída e incompetente quando se trata da
questão das mudanças climáticas.
Não se vê a sociedade realmente mobilizada,
por exemplo, por Belo Monte, uma monstruosidade provada e comprovada, mas que
tem o apoio desinformado (é o que se infere) de porções significativas da
população do Sul e Sudeste, para onde irá boa parte da energia que não for
vendida a preço de banana paras as multinacionais do alumínio fazerem latinha
de sakê, no baixo Amazonas, para o mercado asiático. Faz falta um discurso
politico mais agressivo em relação à questão ambiental. É preciso sobretudo
falar aos povos, chamar a atenção de que saneamento básico é um problema
ambiental, dengue é problema ambiental, lixão é problema ambiental. Não é
possível separar desmatamento de dengue e de saneamento básico. É preciso
convencer a população mais pobre de que melhorar as condições ambientais é
garantir as condições de existência das pessoas. Mas a esquerda tradicional,
como se está comprovando, mostra-se completamente despreparada para articular
um discurso sobre a questão ambiental. Quando suas cabeças mais pensantes
falam, tem-se a sensação de que estão apenas “correndo atrás”, tentando
desajeitadamente capturar e reduzir ao já-conhecido um tema novo, um problema
muito real que não estava em seu DNA ideológico e filosófico. Isso quando ela,
a esquerda, não se alinha com o insustentável projeto ecocida do capitalismo,
revelando assim sua comum origem com este último, lá nas brumas e trevas da
metafísica antropocêntrica do Cristianismo.
Enquanto acharmos que melhorar a
vida das pessoas é dar-lhes mais dinheiro para comprarem uma televisão, em vez
de melhorar o saneamento, o abastecimento de água, a saúde e a educação
fundamental, não vai dar. Você ouve o governo falando que a solução é consumir
mais, mas não vê qualquer ênfase nesses aspectos literalmente fundamentais da
vida humana nas condições dominantes no presente século.
Não se diga, por
suposto, que os mais favorecidos pensem melhor e vejam mais longe que os mais
pobres. Nada mais idiota do que esses Land Rovers que a gente vê a torto e a
direito em São Paulo ou no Rio, rodando com plásticos do Greenpeace e slogans
“ecológicos” colados nos pára-brisas. Gente refestelada nessas banheiras 4×4
que atravancam as ruas e bebem o venenoso óleo diesel, gente que acha que
“contato com a natureza” é fazer rally no Pantanal…
É uma situação difícil:
falta instrução básica, falta compromisso da midia, falta agressividade
política no tratar da questão do ambiente — isso quando se acha que há uma
questão ambiental, o que está longe de ser o caso de nossos atuais
Responsáveis. Estes mostram, ao contrário e por exemplo, preocupação em formar
jovens que dirijam com segurança, e assim ao mesmo tempo mantêm sua aposta
firme no futuro do transporte por carro individual numa cidade como São Paulo,
em que não cabe nem mais uma agulha. Um governo que não se cansa de arrotar
grandeza sobre a quantidade de veiculos produzidos por ano. É um absurdo
utilizar os números da produção de veiculos como indicador de prosperidade
econômica. Isso é uma proposta podre, uma visão tacanha, um projeto burro de
país.
Você está
dizendo que muitos apelos ao consumo vêm do próprio governo. Mas também há um
apelo muito grande que vem do mercado. Como você avalia isso?
O Brasil
é um país capitalista periférico. O capitalismo industrial-financeiro é
considerado por quase todo mundo hoje como uma evidência necessária, o modo
incontornável de um sistema social sobreviver no mundo de hoje. Entendo, ao
contrário de alguns companheiros de viagem, que o capitalismo sustentável é uma
contradição em termos, e que se nossa presente forma de vida econômica é
realmente necessária, então logo nossa forma de vida biológica, isto é, a
espécie humana, vai-se mostrar desnecessária. A Terra vai favorecer outras
alternativas.
A ideia de crescimento negativo, ou de objeção ao crescimento, a
ética da suficiência são contraditórias com a lógica do capital. O capitalismo
depende do crescimento contínuo. A ideia manutenção de um determinado patamar
de equilíbrio na relação de troca energética com a natureza não cabe na matriz
econômica do capitalismo.
Esse impasse, queiramos ou não, vai ser “solucionado”
pelas condições termodinâmicas do planeta em um período muito mais curto do que
imaginávamos. As pessoas fingem não saber o que está acontecendo, preferem não
pensar no assunto, mas o fato é que temos que nos preparar para o pior. E o
Brasil, ao contrário, está sempre se preparando para o melhor. O otimismo
nacional diante de uma situação planetária para lá de inquietante é extremamente
perigoso, e a aposta de que vamos nos dar bem dentro do capitalismo é algo
ingênua, se é que não é, quem sabe, desesperada.. O Brasil continua sendo um
país periférico, uma plantation relativamente high tech que abastece de
produtos primários o capitalismo central. Vivemos de exportar nossa terra e
nossa água em forma de soja, açúcar, carne, para os países industrializados – e
são eles que dão as cartas, controlam o mercado. Estamos bem nesse momento, mas
de forma alguma em posição de controlar a economia mundial. Se mudar um pouco
para um lado ou para o outro, o Brasil pode simplesmente perder esse lugar à
janela onde está sentado hoje. Sem falar, é claro, no fato de que estamos
vivendo uma crise econômica mundial que se tornou explosiva em 2008 e está longe
de acabar; ninguém sabe onde ela vai parar. O Brasil, nesse momento da crise,
está em uma espécie de contrafluxo do tsunami, mas quando a onda quebrar vai
molhar muita gente. Essas coisas têm de ser ditas.
E como você
avalia a relação dessa realidade macropolítica, macroeconômica, com as
realidades do Brasil rural, dos ribeirinhos, dos indígenas?
O projeto
de Brasil que tem a presente coalizão governamental sob o comando do PT é um no
qual ribeirinhos, índios, camponeses, quilombolas são vistos como gente
atrasada, retardados socioculturais que devem ser conduzidos para um outro
estágio. Isso é uma concepção tragicamente equivocada. O PT é visceralmente
paulista, seu projeto é uma “paulistanização” do Brasil. Transformar o interior
do país numa fantasia country: muita festa do peão boiadeiro, muito carro de
tração nas quatro, muita música sertaneja, bota, chapéu, rodeio, boi,
eucalipto, gaúcho. E do outro lado cidades gigantescas e impossíveis como São
Paulo. O PT vê a Amazônia brasileira como um lugar a se civilizar, a se
domesticar, a se rentabilizar, a se capitalizar. Esse é o velho bandeirantismo
que tomou conta de vez do projeto nacional, em uma continuidade lamentável
entre a geopolítica da ditadura e a do governo atual. Mudaram as condições políticas
formais, mas a imagem do que é uma civilização brasileira, do que é uma vida
que valha a pena ser vivida, do que é uma sociedade que esteja em sintonia
consigo mesma, é muito, muito parecida. Estamos vendo hoje, numa ironia bem
dialética, o governo comandado por uma pessoa perseguida e torturada pela
ditadura realizando um projeto de sociedade encampado e implementado por essa
mesma ditadura: destruição da Amazônia, mecanização, transgenização e
agrotoxificação da “lavoura”, migração induzida para as cidades. Por trás de
tudo, uma certa ideia de Brasil que o vê, no início do século XXI, como se ele
devesse ser o que os Estados Unidos foram no século XX. A imagem que o Brasil
tem de si mesmo é, sob vários aspectos, aquela projetada pelos Estados Unidos nos
filmes de Hollywood dos anos 50 – muito carro, muita autoestrada, muita
geladeira, muita televisão, todo mundo feliz. Quem pagava por tudo isso éramos,
entre outros, nós. (Quem nos pagará, agora? A África, mais uma vez? O Haiti? A
Bolivia?). Isso sem falarmos na massa de infelicidade bruta gerada por esse
modo de vida para seus beneficiários mesmo.
É isso que vejo, uma tristeza:
cinco séculos de abominação continuam aí. Sarney é um capitão hereditário, como
os que vieram de Portugal para saquear e devastar a terra dos índios. O nosso
governo dito de esquerda governa com a permissão da oligarquia e dos jagunços
destas para governar, ou seja, pode fazer várias coisas desde que a parte do
leão continue com ela. Toda vez que o governo ensaia alguma medida que ameace
isso, o congresso, eleito sabe-se como, breca, a imprensa derruba, o PMDB
sabota.
Há uma série de impasses para os quais não vejo saída, não vejo como
sair por dentro do jogo político tradicional, com as presentes regras – vejo
mais como sendo possível pelo lado do movimento social. Este está
desmobilizado; se não está, o que mais se ouve é que ele está. Mas se não for
por via do movimento social, vamos continuar vivendo nesse paraíso subjuntivo,
aquele em que um dia tudo vai ficar ótimo. O Brasil é um país dominado
politicamente por grandes proprietários e grandes empreiteiros, que não só nunca
fez sua reforma agrária, como onde se diz que já não é mais preciso fazê-la.
Você acha
que as coisas vão começar a mudar quando chegarem a um limite?
A crise
econômica mundial vai provavelmente pegar o Brasil no contrapé em algum momento
próximo. Mas o que vai acontecer com certeza é que o mundo todo vai passar por
uma transição ecológica, climática e demográfica muito intensa nos próximos 50
anos, com epidemias, fomes, secas, desastres, guerras, invasões. Estamos vendo
as condições climáticas mudarem muito mais aceleradamente do que imaginávamos,
e é grande a possibilidade de catástrofes, de quebras de safras, de crises de
alimentos. Por ora, hoje, isso está até beneficiando o Brasil. Mas um dia a
conta vai chegar. Os climatologistas, os geofísicos, os biólogos e os ecólogos
estão profundamente pessimistas quanto ao ritmo, as causas e as consequências
da transformação das condições ambientais em que se desenvolve hoje a vida da
espécie. Porque haveria eu de estar otimista?
Penso que é preciso insistir que
é possível ser feliz sem se deixar hipnotizar por esse frenesi de consumo que a
mídia nos impõe. Não sou contra o crescimento econômico no Brasil, não sou
idiota a ponto de achar que tudo se resolveria distribuindo a grana do Eike
Batista entre os camponeses do semi-árido nordestino ou cortando os subsídios
aos clãs político-mafiosos que governam o país. Não que isso não fosse uma boa
ideia. Mas sou contra, isso sim, o crescimento da “economia” mundial, e sou a
favor de uma redistribuição das taxas de crescimento. Sou também obviamente a
favor de que todos possam comprar uma geladeira, e, por que não, uma televisão
— mas sou a favor de que isso envolva a máxima implementação das tecnologias
solar e eólica. E teria imenso prazer em parar de andar de carro se pudéssemos
trocar esse meio absurdo de transporte por soluções mais inteligentes.
E como você
vê o jovem nesse contexto?
É muito difícil falar de uma geração à qual
não se pertence. Na década de 60 tínhamos ideias confusas mas ideais claros,
achávamos que podíamos mudar o mundo, e sabíamos que tipo de mundo queríamos.
Acho que, no geral, os horizontes utópicos se retraíram enormemente.
Algum
movimento recente no Brasil ou no mundo chamou sua atenção?
No Brasil,
a aceleração da difusão do que podemos chamar de cultura agro-sulista, tanto à
direita como à esquerda, pelo interior do país. Vejo isso como a consumação do
projeto de branqueamento da nacionalidade, esse modo muito peculiar da elite
dominante acertar suas contas com o próprio passado (passado?) escravista.
Outra
mudança importante foi a consolidação de uma cultura popular ligada ao
movimento evangélico. O evangelismo das igrejas universais do reino de Deus e
congêneres está evidentemente associado à religião do consumo, aliás.
E como você
vê o surgimento das redes sociais, nesse contexto?
Isso é uma das
poucas coisas com que estou bastante otimista: o relativo e progressivo
enfraquecimento do controle total das mídias por cinco ou seis grandes grupos.
Esse enfraquecimento está acontecendo com a proliferação das redes sociais, que
são a grande novidade na sociedade brasileira e que estão contribuindo para
fazer circular um tipo de informação que não tinha trânsito na imprensa
oficial, e permitindo formas de mobilização antes impossíveis. Há movimentos
inteiramente produzidos dentro das redes sociais, como a marcha contra a
homofobia, o churrasco da “gente diferenciada” em Higienópolis, os vários
movimentos contra Belo Monte, a mobilização pelas florestas. As redes são nossa
saída de emergência para a aliança mortal entre governo e mídia. São um fator
de desestabilização, no melhor sentido da palavra, do arranjo de poder
dominante. Se alguma grande mudança no cenário político brasileiro vier a
acontecer, creio que vai passar por essa mobilização das redes.
Por isso se
intensificam as tentativas de controlar essas redes por parte dos poderes
constituídos – isso no mundo inteiro. Pelo controle ao acesso ou por
instrumentos vergonhosos, como o “projeto” brasileiro de banda larga, que
começa pelo reconhecimento de que o serviço será de baixa qualidade. Uma
decisão tecnológica e política antidemocrática e antipopular, equivalente ao
que se faz com a educação: impedir que a população tenha acesso pleno à
circulação cultural. Parece mesmo, às vezes, que há uma conspiração para
impedir que os brasileiros tenham uma educação boa e acesso de qualidade à
internet. Essas coisas vão juntas e têm o mesmo efeito, que é o aumento
da inteligência social, algo que, pelo jeito, é preciso controlar
com muito cuidado.
Você
imagina um novo modelo político?
Um amigo que trabalhava no ministério
do Meio Ambiente na época de Marina Silva me criticava dizendo que essa minha
conversa de ficar longe do Estado era romântica e absurda, que tínhamos que
tomar o poder, sim. Eu respondia que, se tínhamos de tomar o poder, era preciso
saber manter o poder depois, e era aí que a coisa pegava. Não tenho um desenho
político para o Brasil, não tenho a pretensão de saber o que é melhor para o
povo brasileiro em geral e como um todo. Só posso externar minhas preocupações
e indignações, e palpitar, de verdade, apenas ali onde me sinto seguro.
Penso,
de qualquer forma, que se deve insistir na ideia de que o Brasil tem – ou, a
essa altura, teria – as condições ecológicas, geográficas, culturais de
desenvolver um novo estilo de civilização, um que não seja uma cópia
empobrecida do modelo americano e norte-europeu. Poderíamos começar a
experimentar, timidamente que fosse, algum tipo de alternativa aos paradigmas
tecno-econômicos desenvolvidos na Europa moderna. Mas imagino que, se algum
país vai acabar fazendo isso no mundo, será a China. Verdade que os chineses
têm 5000 anos de historia cultural praticamente continua, e o que nós temos a
oferecer são apenas 500 anos de dominação europeia e uma triste historia de
etnocídio, deliberado ou não. Mesmo assim, é indesculpável a falta de
inventividade da sociedade brasileira, pelo menos das suas elite políticas e
intelectuais, que perderam várias ocasiões de se inspirarem nas soluções
socioculturais que os povos brasileiros historicamente ofereceram, e de assim articular
as condições de uma civilização brasileira minimamente diferente dos comerciais
de TV. Temos de
mudar completamente, para começar, a relação secularmente predatória da
sociedade nacional com a natureza, com a base físico-biológica da própria nacionalidade.
E está na hora de iniciarmos uma relação nova com o consumo, menos ansiosa e
mais realista diante da situação de crise atual. A felicidade tem muitos
caminhos.
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