Conjuntura da Semana. O mal-estar que exala das ruas
A análise
da Conjuntura da Semana é uma (re)leitura das Notícias do Dia publicadas
diariamente no sítio do
IHU. A análise é elaborada, em fina
sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT,
parceiro estratégico do IHU, com sede em Curitiba-PR, e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do
Norte - UFRN, parceiro do IHU na elaboração das Notícias do Dia.
Sumário:
O mal-estar que vem das ruas
Ressentimento
e indignação
Mutismo da política
Limites do modelo
neodesenvolvimentista
Periferia. Polícia chega antes que políticas
públicas
A esquerda não sabe lidar com o movimento
Conjuntura da Semana em frases
Ressentimento
e indignação
Um mal-estar vem das ruas. Quando menos se esperava e
quando muitos pensavam que a ‘questão social’ estava bem encaminhada e até
mesmo resolvida – mobilidade social crescente de milhares para cima –, as ruas
dão o recado que as coisas não estão bem.
Um caldo de ressentimento percorre as ruas. Algo
estava encoberto sob a superfície. Algo como: ‘eu fiquei de fora, agora eu
quero o meu’, comenta o sociólogo Werneck Vianna. Há
um clima de frustração dos que não se sentem incluídos na sociedade de consumo,
dos milhares que trabalham em empregos precários, dos que estudam e trabalham e
precisam se deslocar nas metrópoles carrocentristas, mas também dos que não
estudam e não trabalham e se dão conta de que o prometido atalho à sociedade de
consumo não chegará pela educação e menos ainda pelo emprego de salário mínimo.
Ao ressentimento junta-se também a indignação pelo não
acesso, ou acesso restrito, a serviços importantes como saúde, educação,
saneamento, moradia, transporte público... esse último estopim das
manifestações de junho – “O Brasil cresceu muito rápido, teve êxitos
consideráveis, mas este Estado não foi capaz de oferecer cidadania”, diz Werneck.
O mal-estar das ruas sinaliza que o modelo de inclusão
via mercado de consumo – a aposta lulista/dilmista – se tornou insuficiente.
Segundo Werneck Vianna,
“duas décadas de uma política que hipotecou a sorte do moderno à modernização
(...) obstou o acesso à participação política dos filhos dos seus próprios
sucessos econômicos, recomendando-lhes que usufruíssem as delícias do consumo.
A recomendação valia para todos, mas o desfrute, é claro, teria de ser
duramente diferencial”.
Por toda parte diz o sociólogo, “larva a síndrome do
ressentimento, especialmente nos jovens e em todos os que não se sentem
reconhecidos em seus direitos e identidades, a sensação de uma exclusão injusta
porque, embora se sintam formalmente convidados pelas nossas instituições e
pelo discurso oficial a participar do festim dos êxitos da modernização
econômica do País, esbarram na estreiteza das portas que dão acesso a ele”.
O mutismo da política
Frente ao ressentimento e a indignação do mal-estar
que vem das ruas, o mundo da política – os governos estaduais, o Palácio do
Planalto, os partidos e até mesmo movimentos sociais conhecidos –, olham com
perturbação e certa incredulidade para o que acontece. Um fosso se abriu entre
as ruas e a representação política e institucional. Como afirma o
sociólogo Werneck Vianna os nossos políticos "não
aprenderam nada, nem esqueceram nada com as jornadas de junho".
Depois de um átimo em que foram sacolejados pelas
ruas, retornaram ao lugar comum do fazer político em seus conchavos,
articulações e alianças que não levam em conta o ruído de baixo.
Tomaram um susto diz Francisco de Oliveira.
Comenta o sociólogo: “Assustaram os donos do poder, e isso foi ótimo. Isso é
que é importante. Esse objetivo foi cumprido. Eu falava que era inédito porque
a sociedade brasileira é muito pacata. A violência é só pessoal, privada, o que
é um horror. Quando vai para a violência pública, as coisas melhoram. Esse é o
resultado que nos interessa: um estado de ânimo da população que assuste os
donos do poder".
Os donos do poder se assustaram, mas ficou nisso. A
presidente Dilma retornou ao papel de gerente do PAC.
É incapaz de gestos mais ousados. Como afirma Francisco de Oliveira,
“gerente é o antípoda da rebeldia”. Na opinião do sociólogo, “uma gerentona que
sabe administrar. É péssimo. O Brasil não precisa de gerentes. Precisa de
políticos que tenham capacidade de expressar essa transformação e dar um passo
a frente”.
Os partidos, por sua vez, não estão nem aí. Até mesmo quem se
anunciava como novidade na política optou por camin hos tradicionais ao se
aliar com quem se diz socialista, mas ao mesmo tempo corteja abertamente o agronegócio. O PT que
já foi o partido das ruas se preocupou muito mais com o seu Processo de Eleição
Direta - PED, que reproduz os velhos vícios da política tradicional, do que
o esforço em interpretar e dar respostas às ruas.
Um subproduto das ruas, a Reforma Política, depois de
solenemente anunciada virou pó. Em menos de 48 horas, a proposta de Assembleia
Constituinte virou Plebiscito, transitou para Referendo e sumiu da
agenda política do executivo e do Congresso.
A política brasileira tem se transformado na arte do
silêncio, diz Vladimir Safatle.
“Arte de passar em silêncio sobre democracia direta, como pagar dignamente
professores, como implementar uma consciência ecológica radical, como quebrar a
oligopolização da economia, como taxar mais os ricos e dar mais serviços aos
pobres. Mas também a arte de tentar silenciar descontentes (...) Nesse contexto
de mutismo, a violência aparece como a primeira revolta contra a impotência
política”, afirma Safatle.
No geral os governantes “reduziram o tom da soberba,
da certeza de suas eleições e popularidades, tidas por garantidas, mas não
fizeram quase nada. Assustaram-se. Desfilaram promessas e complacência por um
lado, e por outro determinaram a mais dura repressão às ruas”, destaca Bruno Cava.
Em vez de aproveitarem a onda como destaca Giuseppe Cocco, e
radicalizarem a democracia, os governantes se colocaram mais contra ela do que
a favor. Em vez de procurarem compreender o recado das ruas, os poderes
instituídos sugerem enquadrar os que nela estão.
A esquerda não entendeu o movimento. Segundo Safatle,
“ao perguntarmos sobre o que pode significar a constância, cada vez maior na
política brasileira, de fenômenos violentos como esses, duas grandes
explicações são fornecidas”. A primeira, diz ele, e “mais clássica gostaria de
nos levar a acreditar que estaríamos diante de simples atos de vandalismo,
normalmente feitos por jovens proto-delinquentes inebriados por seus delírios
narcísicos de onipotência e infiltrados em meio a manifestantes de boa
vontade”. A segunda continua o filósofo “é o mero resultado da inversão de
sinais, fornecendo-nos uma visão romanceada daqueles que responderiam à
violência policial com uma violência legítima”. Melhor seria, entretanto, diz
“se procurássemos analisar tal violência como um profundo sintoma social da
vida política nacional c ontemporânea”. Uma resposta ao mutismo da política.
Para Safatle, “já há algum tempo, a
política brasileira tem expulsado muita coisa de seu interior. Tendendo, cada vez
mais, a se limitar a discussões gerenciais sobre modelos relativamente
consensuais de gestão socioeconômica (vide o debate recente sobre o dito ‘tripé
econômico’, do qual ninguém parece discordar), ela perde a possibilidade de
mobilizar populações por meio de alternativas não testadas e que ainda
contenham um forte potencial criativo”. Assim, conclui, “ela [a política] perde
também a capacidade de acolher demandas que, mesmo sendo urgentes, sempre
colidem com boas justificativas tecnicistas para serem deixadas para mais
tarde”.
Limites do modelo neodesenvolvimentista
O mal-estar das ruas indica que há problemas com o
modelo neodesenvolvimentista. Na análise de Ivo Lesbaupin, “os
governos do PT indubitavelmente deram mais atenção ao social que os governos
anteriores, como o aumento real do salário-mínimo e o programa Bolsa-Família, e
reduziram fortemente o desemprego. A política externa é mais independente e
também solidária com os governos progressistas de outros países da América
Latina. E poderíamos citar uma lista de avanços ocorridos nos últimos dez anos,
avanços que devem ser mantidos e devemos apoiar”.
Porém, diz ele, “se examinarmos mais de perto, o que
nos impressiona não são as diferenças com os governos anteriores, são as
semelhanças – cada vez maiores, à medida que o tempo passa”. Segundo o
sociólogo, “o governo FHC é considerado uma ‘herança maldita’, mas a política
econômica que privilegia o capital financeiro permanece de pé: os bancos
tiveram mais lucros nos governos do PT do que antes”.
Segundo Lesbaupin, “não foi feita nenhuma
reforma estrutural nas estruturas geradoras da desigualdade no país, no
entanto, foram feitas reformas estruturais para atender aos interesses do
capital, como a reforma da previdência do setor público, aprovada no primeiro
ano do governo Lula”.
Para o professor da UFRJ, “se queremos
saber para quem o governo trabalha, temos de examinar o orçamento realizado:
para onde estão indo os recursos? Os recursos do país são destinados
fundamentalmente ao pagamento da dívida pública, interna e externa, e de seus
juros”. Continua ele: “O orçamento realizado de 2012 mostra que 44% do nosso
dinheiro foi usado para os juros, amortização e rolagem da dívida, enquanto que
apenas 5% para a saúde e 3% para a educação. Em suma, o destino de quase metade
do orçamento é a pequena camada mais rica do país – que são aqueles que recebem
os juros da dívida -, além dos credores externos. Cada décimo de aumento dos
juros pelo Banco Central significa maiores ganhos para os que já são muito
ricos”.
Portanto, conclui, “o primeiro setor cujos interesses
são atendidos é o capital financeiro (bancos e investidores financeiros), o
segundo setor cujos interesses são atendidos é constituído pelas grandes
empreiteiras e há ainda um terceiro setor que tem recebido muito apoio do
governo: o agronegócio. O governo ajuda a agricultura familiar, sem dúvida, mas
a proporção é de 90% para o agronegócio e 10% para a agricultura familiar”.
Para Ivo Lesbaupin é uma ironia
atribuir às ruas a ameaça de um retorno da direita. "O que traria a volta
da direita?", pergunta. "Privatizações? Leilões do petróleo? de áreas
do pré-sal? Avanço do agronegócio? Usinas hidrelétricas na Amazônia? Perda de
direitos dos povos indígenas? Tropas militares para enfrentá-los? Código
Florestal? Plantio de transgênicos? Aumento do uso de agrotóxicos? A não
realização da reforma agrária?" E responde: "Tudo isso está sendo
feito por este governo".
Segundo o professor da UFRJ, "existe uma direita
mais à direita que este governo, sem dúvida”. Para Lesbaupin esse
governo “tem certamente várias políticas louváveis, faz o enfrentamento da
pobreza, reduz a miséria, melhora a capacidade de consumo dos pobres com mais crédito”.
O problema diz ele, é que “não muda as estruturas geradoras da desigualdade
social e, por isso, continua transferindo a maior parte da renda e da riqueza
do país para os mais ricos do país e do mundo. E entregando nossas riquezas
naturais para o setor privado e as multinacionais. Isso mostra claramente a
quem este governo serve em primeiro lugar”.
Na opinião de Paulo Nogueira,
pela ótica da esquerda, mais especificamente a esquerda petista, as ruas
cometem um pecado mortal, “não dobram os joelhos para reverenciar os avanços
sociais realizados pelo PT nos últimos dez anos, na verdade, acham que os
avanços foram muito menores do que poderiam e deveriam ser”.
Falando dos Black blocs, diz ele que não é
tão difícil assim enxergar os motivos da revolta desses jovens. Comenta: “Veja
o que está acontecendo com os índios sob Dilma. Ou o que ocorreu a tantos
pobres que tiveram o azar de construir seu casebre num local marcado para
receber obras da Copa do Mundo. Agora preste atenção no garoto de 17 anos da
Zona Norte de São Paulo que antes de morrer ainda teve tempo de perguntar ao PM
que o assassinou por que atirou (...) Quem está cuidando dessa gente toda?”.
Segundo ele, “um governo popular tinha que fazer mais”.
Para Perry Anderson as
ruas “levantaram a questão da distribuição escandalosamente distorcida das
despesas públicas no Brasil”.
Comentávamos na época: “O ano de 2013 anuncia mais do
mesmo. O foco central permanece na economia como meio e fim na estratégia
governamental de inclusão social. A concepção do modelo em curso sugere a
inclusão via mercado. Já não se trata de um modelo de transformação, via
reformas estruturais, mas de aderência à lógica produtivista-consumista e
mitigação da pobreza via programas e políticas sociais compensatórias”.
Na mesma análise dizíamos que “o cenário para 2013 é o
de uma agenda regressiva na área social” e afirmávamos que “a ausência,
entretanto, das demandas sociais na agenda do governo ou o tratamento tímido
que é dado a essas temáticas, pode desaguar numa retomada das lutas sociais”.
Concluíamos com a afirmação que “2013 sinaliza para o ascenso das lutas
sociais”. Cinco meses depois, grandes manifestações tomavam conta das
ruas.
Polícia chega antes que políticas públicas
A violência dos Black Blocs, por outro
lado, trouxe à tona a escalada da violência praticada pelo Estado em sua versão
armada - as polícias militares, particularmente nas periferias das grandes
metrópoles. O que aconteceu com Amarildo e o que aconteceu com o jovem
adolescente Douglas Rodrigues são faces de uma mesma
moeda.
“Travestidas
como acidentes, o fato é que a violência e a morte tem uma estranha predileção
etária, étnica, social e geográfica: as vitimas são sempre jovens, negros ou
pobres e moradores de periferias”, afirma Douglas Belchior.
Os jovens de periferia, comenta Renato Rovai “não
querem mais ver irmãos, parentes, amigos, colegas ou apenas conhecidos, serem
enterrados porque cometeram o crime de terem nascido, em geral negros, e
viverem nas periferias. Eles estão dizendo chega. E a nossa democracia, sim,
democracia, não tem dado conta de resolver esse problema. E eles perderam o
medo de perder a vida se necessário for para mostrar que não irão bovinamente
para covas rasas de cemitérios. Assassinados por polícias que deveriam
preservar suas vidas. E vitimados por um Estado que não lhes garante futuro e
nem paz”.
A força bruta chega antes que as políticas públicas.
Ilustrativa a entrevista de José Cláudio Alvespara
o IHU analisando o caso das Unidades de Polícia
Pacificadora –UPPs. Comenta que as UPPs camuflam a
violência e a sua versão social praticada é ridícula. Segundo ele para alterar
a atual situação das favelas “Ã © preciso investigar a constituição dessas
comunidades, como atuam, qual é o grau de escolaridade, de saúde, de
urbanização, de acesso à cultura que elas têm, e não só falar de
‘culturazinha’, de bater lata, de dançar, de tocar violino para dizer que os
moradores são cultos. Essas ações são inúteis. Tem de fazer um conjunto de
ações que elevem essas pessoas a outro patamar de cidadania, de atuação
política, cultural e econômica, a qual tenha condições de se confrontar com
essa estrutura criminosa que se perpetua”.
O ataque aos símbolos do capitalismo e aos prédios do
Estado promovido pelos Black blocs e também por jovens que se
reúnem em grupos diversos também podem ser interpretados como ressentimento
daqueles que não se veem inseridos no sistema e contra um Estado, que do qual
conhecem apenas o seu truculento braço armado.
A esquerda não sabe lidar com o movimento
O mal-estar que vem das ruas pode ainda ser
interpretado pela confusão que criou na esquerda. Trata-se de um novo tipo de
movimento que foge aos esquemas tradicionais. A esquerda fordista –
hierarquizada, padronizada – estranha a ausência de pautas claras, de
lideranças definidas, da ‘ação coletiva’ caótica.
Um líder sindical num debate – no encontro da Abet (Associação
Brasileira de Estudos do Trabalho) em outubro em Curitiba – afirmou que as
manifestações sindicais, a passeata, obedecem a uma lógica. O início é o
momento da concentração, da aglutinação; o meio é momento propagandístico das
reivindicações e o final é o lugar das falas dos dirigentes.
Esse esquema as jornadas de junho implodiram. Os
protestos de junho apresentam uma nova configuração que oscila entre processo e
resultado.
Como destaca Pablo Ortellado a
grande novidade é que temos assistido “o nascimento de movimentos horizontais
na forma de organização e autônomos em relação a partidos e instituições. Esses
movimentos frequentemente valorizam mais o processo do que o resultado: é o
meio pelo qual atuam, a horizontalidade, a democracia direta, assim como a
criatividade das suas ações, que dão a eles sabor e sentido. As lutas são ao
mesmo tempo experiências vivas de uma democracia comunitária e espaço de
autoexpressão contracultural”.
Segundo ele, “a dupla vitória de reduzir o custo das
passagens e trazer para a centralidade do debate político a tarifa zero por
meio de uma ação autônoma com uma estratégica clara é o mais importante legado
dos protestos de junho”.
Para o ativista e professor na Escola de Artes,
Ciências e Humanidades da USP “não se trata apenas um novo paradigma para as
lutas sociais no Brasil, mas um modelo de ação que combina a política
horizontalista e contracultural dos novos movimentos com um maduro sentido de
estratégia".
Em sua opinião, “durante muitos anos, os novos
movimentos viveram sob uma tensão entre processo e resultado. A experiência dos
protestos de junho deixa dois legados opostos: o da mais extrema dispersão
processual e o da fértil conjugação de processo e resultado na luta contra o
aumento”.
Estamos diante de uma bifurcação afirma Cocco. Para ele,
as jornadas de junho apresentam algumas lições: “A primeira [lição] é que
nenhuma das formas tradicionais de organização, sejam elas partidárias,
sindicais ou de movimentos organizados, sabe lidar com essa nova dinâmica. A
segunda lição, comenta, “é entender antes de fazer críticas ou constatações de
desqualificação, de apologia, até criminalizadoras às vezes”. A terceira lição
conclui “é que as formas representativas, sobretudo os partidos, quando
participam de algum momento da dinâmica de governo, ou se abrem para a onda
entrar ou vão ser deslegitimados”.
As jornadas de junho não terminaram. O mal-estar das
ruas menos ainda.
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