"As ruas fervem em todo o Brasil. Jovens, e outros nem tanto, ocupam as cidades que o capital teima em tentar monopolizar para seu gozo exclusivo, exigindo transportes mais baratos e, cada vez mais, direito à livre manifestação. Com muito vinagre e fogo no lixão urbano, os manifestantes rebelados afrontam as bombas de gás, balas de borracha, e outras nem tanto, da repressão policial. Nos (tele)jornais, querem dirigir o que não puderam evitar, apresentando um vilão fantasmático: “a corrupção!”, para tentar desviar o foco da materialidade das contradições sociais que emergem com as centenas de milhares de pessoas nas ruas. Para eles, há os pacíficos e os vândalos. Bandeiras nacionais e hinos patrióticos representam a “verdadeira cidadania”, os partidos de esquerda seriam os “aproveitadores”. A linha é tênue, e varia conforme os humores dos manifestantes e as “sondagens de opinião”. Há quem, nas próprias manifestações, reproduza valores desse esforço ideológico para direcionar as mobilizações para a zona de conforto da classe dominante. Mas, os jornalistas dos monopólios da comunicação precisam se refugiar nos helicópteros e estúdios, porque sabem que a maioria ali não acredita no que dizem e nas ruas podem também ser brindados com o escracho dos que lutam. Lutam pelo que? O que explica a explosividade e a rapidez surpreendentemente desses acontecimentos? Aonde podem chegar? Qual o seu potencial? E os limites que precisam ultrapassar?" - Com esta breve introdução iniciamos nosso blog em junho de 2013. A luta continua e por isso este espaço continua aberto às analises!

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Não é só pelos bailes funks

“Rolezinhos” surgem em meio a proibições na periferia; ao se verem discriminados, os meninos cheios de gírias e sonhos moldados pela ostentação criaram um debate sobre cidadania
por Samantha Maia — publicado 14/01/2014 15:02, última modificação 15/01/2014 08:46

Em vez de manifestação, é encontro. No lugar da passeata, tem “rolezinho”. A mobilização de jovens da periferia de São Paulo em shoppings foi uma forma encontrada para chamar a atenção sobre a sua realidade. Faltava apenas a sanção do prefeito paulistano Fernando Haddad (PT) para que a proibição a bailes funks em logradouros públicos, independentemente do horário, entrasse em vigor na capital. O projeto - o primeiro de autoria do vereador Conte Lopes (PTB), ex-comandante da Rota - passou pela aprovação da Câmara sem grandes dificuldades em 2013. Parecia não existir oposição.
Eis que no dia 7 de dezembro daquele ano, o shopping Itaquera, na Zona Leste de São Paulo, foi surpreendido pela presença de cerca de 6 mil garotos e garotas do funk. Na página da organização do evento no Facebook, adolescentes na faixa dos 15 a 20 anos comentavam que era para "tirar umas fotos", "dar uns beijos", "rever os amigos". Não se sabe exatamente se a proibição aos bailes foi o verdadeiro estopim do movimento. O principal objetivo manifestado pelos milhares de jovens era se divertir.
O número elevado de pessoas causou tumulto. A presença massiva de garotos da periferia, em sua maioria negros, causou mal estar no centro comercial. Houve medo dos frequentadores diante de um grupo antes escondido nos rincões com suas músicas proibidas. A primeira notícia divulgada, a partir de fontes oficiais - leia-se, a polícia -, era de que se tratava de um arrastão. Na tevê, as cenas eram de correria. No pé das reportagens, a observação da administração do shopping passava batido: não houve arrastão e os furtos eram casos isolados.
A repercussão negativa levou os participantes do “rolezinho” a uma discussão para além do que o encontro pretendia. Dentre os questionamentos levantados pelos funkeiros nas redes sociais estavam o porquê não serem bem-vindos ao shopping. Por que a polícia agia de forma hostil sem que eles fizessem algo errado? Mais: como eles poderiam mostrar que tinham o direito de entrar no shopping?
Além de atentar para o problema mais premente, o da proibição do baile funk, a galera dos “rolezinhos” jogou luz sobre o preconceito de classe e o racismo na cidade de São Paulo.
A invasão do templo do consumo por habitantes de guetos é uma subversão da ordem higienista. Ao ocupar aquele espaço, ultrapassaram uma das barreiras mais sérias da estrutura social urbana nas grandes cidades brasileiras: a da segurança e da exclusividade de ser um consumidor em um shopping center.
Não faltaram xingamentos aos “rolezeiros”: bandidinhos, maloqueiros, vagabundos, gente que não tem mais o que fazer. Deveriam, segundo indignados frequentadores de shoppings, trabalhar e aprender a falar igual gente, dentre outras sugestões nada amigáveis. Muitos jovens já estão, no entanto, no mercado de trabalho, a desempenhar funções mal remuneradas, na base da pirâmide social.
Ao se verem discriminados, os meninos e meninas cheios de gírias e com sonhos moldados pela ostentação do consumo envolveram-se em um debate valioso sobre cidadania, seus direitos e seu papel na sociedade. Mesmo que sem perceber, faziam política. Como um dos inimigos apontados, surge a mídia, taxada pelos “rolezeiros” de “mentirosa” – que, segundo comentários de participantes nas redes sociais, estaria em busca da audiência a qualquer custo ao retratar os eventos de maneira pejorativa.
O tom dos encontros seguintes foi o de provar que não eram o que haviam pintado sobre eles. Um dos organizadores do segundo “rolezinho”, no shopping Internacional de Guarulhos, alertava para a situação desfavorável em seu perfil no Facebook: "Temos que manter a disciplina sem baderna, sem drogas, sem bebidas alcoólicas. Nós vamos pra curtir. Se quiser fazer essas coisas, não estará participando do encontro. Faça fora do shopping porque estão todos voltados a nós: a tevê e os jornais estão olhando pra nós. Se nós fizermos baderna não vamos ter moral para pedir nossos direitos e vamos ser passados como marginais". No “rolezinho” realizado no dia 14 de dezembro houve novamente confusão e 23 pessoas foram levadas até a delegacia sem justificativa.
Outros eventos semelhantes ocorreram sob a repressão policial e críticas da sociedade que não diferem das apontadas a outras manifestações. "A gente não tem mais sossego nem no shopping", disse uma dona de casa entrevistada.
A lógica é clara. Que as pessoas tenham problemas para resolver, finge-se entender, desde que não atrapalhem o trânsito ou o passeio no shopping.
No dia 8 de janeiro, o prefeito Haddad vetou na íntegra o projeto de lei que proíbe a utilização de vias públicas para realização de bailes funk. A decisão não apaziguou, porém, os ânimos e outros “rolezinhos” continuam em alta. Agora os jovens funkeiros querem mais espaços de lazer e respeito do seu direito de ir e vir. Como uma paródia dos 20 centavos da tarifa de ônibus, estopim das manifestações de junho, pode-se dizer hoje que “não é só pelos bailes funks”. O debate levantado pelos “rolezinhos” diz respeito a toda a sociedade.

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